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Foto do escritorFilipa Melo

ANTERO DE QUENTAL | Cavaleiro andante


Eduardo Lourenço formulou a pergunta em 1986, num dos ensaios de Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera (recém-reeditado pela Gradiva). Será Antero de Quental (1842-1891), como Camões ou Pessoa, «apenas um alibi cultural, o tio da América que enriqueceu fora de nós e nos povoa a mente de textos sem relação alguma com a nossa cultura média ou o nosso destino colectivo»? Por que motivo não foi o «suicida das ilhas atlânticas» convidado para o nosso panteão? Recebido com positivismo ou «positividade oportunista», ficou-se pelo molde o programa não-escrito de Antero para «ligar Portugal com o movimento moderno», o realismo e um certo humanismo europeu. E ainda que, por exemplo, João Gaspar Simões defenda que essa ausência de programa completo foi condição para a Geração de 70 ter cumprido, como «actor e vítima», um «parricídio cultural» (Lourenço), Antero não passa hoje de um cometa fulgurante, cujo rasto se dilui no esquecimento.

Reeditou-se recentemente, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em parceria com a Câmara Municipal de Ponta Delgada, a Fotobiografia de Antero de Quental, de Ana Maria Almeida Martins, com material iconográfico inédito acrescentado à primeira edição, de 1986. Acompanha-se a vida e obra de Antero por ordem cronológica e através de imagens (impressionantes, os registos da fisionomia complexa e intensa do poeta), contextualizadas por telegráficas legendas explicativas e, sobretudo, por uma excelente escolha de reprodução de ensaios, poemas ou correspondência. A par dos fundamentais «Bom-Senso e Bom Gosto – Carta ao Ex.mo Senhor A. F. de Castilho» (1865), «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» (1871, a primeira das cinco Conferências Democráticas do Casino), «Considerações Sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa» (1872) ou «Tendências Gerais da Filosofia» (1890), surgem textos pouco conhecidos, mas reveladores. Entre eles, estão «A Influência da Mulher na Civilização» (1861), «A Indiferença em Política» (1862), o patriótico «O Infante D. Henrique» (1866) ou o primeiro ensaio filosófico, «O Sentimento da Imortalidade», de 1865.

Fotobiografia de Antero de Quental talvez contribua para recuperar a atenção para o orador brilhante, polemista, co-fundador do Partido Socialista Português, filósofo e espiritualista, um sonetista de excepção hoje excluído dos programas de ensino. Não só por isso, estas 400 páginas com boa impressão, bem mereciam melhor colagem de lombada e mais do que o fraquíssimo esforço de divulgação que a Imprensa Nacional faz dos seus livros. Ao que parece, o «positivamente deslocado» Antero continua, como o descreveu Gomes Leal, a ser «como uma grande águia fulva que tivessem encarcerado num capoeira».

Pesará talvez sobre ele a pseudo-contradição de, com veemência tão cega quanto o seu adversário Castilho, ter procurado desmantelar o sentimentalismo e o ultra-romantismo, para por fim ser apontado como o nosso maior poeta romântico. Mas Antero de Quental é um homem em pleno conflito entre o agir e o pensar, entre um idealismo objectivo e desejo de justiça (herdados de Hegel e Proudhon) e a reivindicação do sentimento subjectivo, até mesmo de um ideal de santidade. O criador de Raios de Extinta Luz e Odes Modernas resulta num utópico romântico, por via da «biografia espiritual mais dramática da literatura portuguesa» (definição do ensaísta Óscar Lopes) transposta por fim para sonetos maiores que exprimem uma ansiedade vaga e frustrada.



Em 1866, com 24 anos, Antero, herdeiro de um velho morgadio açoriano, confidencia a um amigo: «A natureza em mim é conservadora; só o espírito é que é revolucionário.» O poeta, formado em Direito, acaba de entrar para a Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo. Põe a valer a sua acção prática na luta pela dignificação do trabalho. Pouco depois, em Paris, voltará a vestir o fato de operário para sentir o pulsar do realismo revolucionário de Proudhon. De regresso a Portugal, prossegue a vontade fogosa de dirigir subversivamente aquela que, em proporção, pode ser considerada uma das mais ricas gerações de intelectuais portugueses. Mas o país, o «porco adormecido» de que fala Eça de Queirós, deixa-o a pregar sem sucesso «uma liberdade de consciência que poucos reclamavam e uma revolução que só na sua alma existia» (Lourenço). Os vencidos da vida só se tornarão vencedores para as gerações da República.

Antero de Quental suicida-se aos 49 anos. Vítima de «uma devoção dramática a um sentido democrático-social da vida» (Lopes) e de uma doença maníaco-depressiva profunda que nem mesmo Charcot conseguiu diagnosticar. Às duas, sacrifica a obra poética. Destruirá, antes de terminado, o seu «Programa dos trabalhos para a geração nova». E a sua solar «voz das multidões» converte-se apenas no grito ensimesmado de «O Palácio da Ventura»: «Com grandes golpes bato à porta e brado: / Eu sou o vagabundo, o Deserdado… / Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais! // Abrem-se as portas d’ouro, com fragor… / Mas dentro encontro só, cheio de dor, / silêncio e escuridão – e nada mais!»


Ler/Setembro 2009


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