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Contos
Homem gritando

O riso


 

Dizem que morri de indiferença. Que alguém grafou a palavra no atestado de óbito e que ninguém se deu conta de que ela não constava da lista ordenada de causas de morte. Eu não nego. Apenas não me é indiferente que não tenham anexado um adjetivo ao documento: violenta, “morte violenta”. E explico.

Pára de gritar. Já disse. Pára de gritar! Sabes bem que não conseguirás já o que queres. Eu ainda existo, e ainda é cedo. Terminarei primeiro de rubricar os contratos. A menina Amélia encarregar-se-á de entrar por aquela porta daqui a uns minutos – seis, para ser preciso – e perguntar-me-á se necessito de mais alguma coisa. Que não, que pode sair – direi. Arrumarei os papéis em cima da secretária, fumarei um último cigarro e atenderei mais uns telefonemas. Só depois poderei fechar as persianas, colocar o telefone no gancho e recostar-me no cadeirão, junto à estante. Pára… já disse.

No dia em que concluí o curso de Direito, o meu pai fez uma festa, aqui, neste escritório. Eu limitei-me a convidar a Virgínia para jantar no Tavares e a pedi-la em casamento. Foi simples. Ela esperava o pedido. Formalizei-o entre o prato de peixe e o prato de carne, colocando-lhe no dedo o anel que a avó Joana determinara ceder-me para a ocasião. Ela sorriu e corou levemente. Disse que sim e, já em frente da sobremesa, marcou a data do jantar de noivado. Dois anos depois, nasceu o Jorge. Quatro, a Jacinta.

 

No escritório, comecei por assessorar o pai nos casos de menor importância. Gradualmente, fui progredindo no domínio do contacto com os juízes, na prestação na barra, no jogo de bastidores de influência, na hierarquia do escritório. Aprendi a jogar golfe, a escolher as gravatas italianas e os sapatos ingleses. Abdiquei dos fins-de-semana na quinta da serra para melhor gerir o trabalho acumulado e as amantes. Não deixei nunca de ir à missa aos domingos de manhã, de oferecer presentes caros à Virgínia e, aos miúdos, de lhes pagar o colégio inglês e os campos de férias no estrangeiro. Jamais cedi à inconveniência de construir grandes amizades, apenas laços de mútua conveniência, alimentados com alguns pequenos momentos de suposta descontração. Sempre estive alerta aos meus deveres de filho, de marido, de pai, de amante, de líder de um dos mais importantes escritórios de advogados do país. E cumpri, cumpri sempre.

Pára, já disse. Pára de gritar. Não serve de nada. Eu bem sei que, quando tudo isto se passou, eu não estava, ou começava a não estar. E que, quando se pensam coisas como estas, a pessoa acaba por ser embalada pelo próprio relato e tende a desculpar-se enquanto se vai recriando com pinceladas toscas. Não vale a pena gritar. Eu não vou pôr o corpo fora. Aliás, nem poderia. Foi no corpo que comecei a notar as diferenças. 

Desde pequeno que havia sido franzino. De tal forma que passava a vida a tropeçar e a cair, como se a ponta dos pés, dentro da biqueira dos sapatos, estivesse ligada à ponta do nariz e as duas me puxassem para o chão, onde se encontrariam em igual plano: horizontal. Detestei as aulas de ginástica, as férias na praia e os “saudáveis” jogos e corridas à beira-mar. Até no sexo esperei pela Virgínia para uma prática rápida e eficaz, dispensando movimentos desnecessários. 

Quando comecei a ganhar nome no escritório e a defender cada vez mais casos, passei a ter pouco tempo para comer, e, em conformidade, a comer demasiado. A comer tudo em pouco tempo, a engolir à pressa aquilo que selecionava calculando o peso que teria no estômago depois de o deglutir. O desconforto provocado pelo inchaço do estômago obrigava-me a senti-lo, e a sentir-me, ao longo do dia. Engordei rapidamente. Passei do andar desconjuntado que me caracterizava a um andar pesado, a uma forma vincada de me mexer, que acentuava em direta proporção o estatuto que ia atingindo. Na cama com as primeiras amantes, ginastiquei-me para acompanhar as acrobacias que lhes exigia, preparando a chegada do prazer, quando o meu corpo se sobreporia ao delas, dominando, vitorioso. 

Em casa, as ementas seguiram os meus novos apetites e os espaços foram-se adaptando às minhas novas formas. O cadeirão na sala e o lugar no topo da mesa de jantar passaram a ser exclusiva e religiosamente meus, a magreza elegante de uma nova Virgínia, fanática por ginásios, ajustou-se a uma quarta parte da cama de casal, os meus filhos deixaram de sair dos quartos a não ser à hora das refeições, os empregados aprenderam a aguardar na cozinha e na copa a chamada para servir, com a necessária discrição, as vontades do doutor. Eis-me então, volumoso e senhor do meu espaço.

Por que ris, agora? Não esperaria comoção enquanto descrevo, mas, riso?! Riso, não. Antes os gritos. Mas não, ainda não. Pára. Eu mesmo me encarrego do contexto. Vai à janela como foste naquele dia, olha a rua em baixo. 

Acabara de chegar do enterro do meu pai. Sobre a secretária, acumulavam-se os telegramas, as cartas de condolência. A menina Amélia fora instruída para não passar qualquer telefonema e todos os outros funcionários haviam sido dispensados. Eu estou em frente da janela e olho a rua em baixo. Acho que ficaria bem no momento chorar um pouco, deixar correr uma lágrima enquanto recordo o meu pai, já com saudade. Tento lembrar-me de algum pormenor factual comovente. Nada. De um gesto característico. Nada. De uma frase. Nada. De uma particularidade física. Nada. De uma cena da infância. Nada. Da última conversa. Nem uma palavra.

Retiro a tabaqueira do bolso, seleciono um cigarro e acendo-o. Sempre que entendo simular uma pausa pensativa, liberto o fumo do tabaco em circunferências cuidadosamente moldadas pelos lábios. Uma, duas, três… Sobem agora em frente do vidro da janela, até chocarem com ele e se dissolverem. Acompanho-lhes o movimento, enquanto tento despreocupadamente recordar o meu pai. Serve qualquer dado, qualquer pista que me traga de volta um pedaço lacrimal do meu pai. Nada. Concluo: sei mais sobre o fumo do meu cigarro do que sobre o meu pai. E não resisto à vontade de rir. Abro a boca e escuto em seguida um som distorcido, um “ah” que se prolonga, entrecortado por pausas que mais parecem soluços. Tento de novo. Entreabro os lábios e solto o riso como antes soltara o fumo do tabaco. O que sai é um “oh” cavo, também distendido aos solavancos por pequenas pausas, em tudo também semelhante ao som de um motor gripado. Fecho os lábios com força e recuo um passo. Levo a mão à garganta e tusso para a aclarar. Tento de novo. O mesmo som. De novo. De novo. De novo.

Correm-me fios de suor pela testa, desfaço o nó da gravata e abro os botões da camisa. Não me lembro de nada. Não penso em nada. Deixo-me cair no cadeirão junto à estante. Escuto o meu riso dentro da minha cabeça, ininterrupto. Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah, Ah,… Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh, Oh,… 

 

PÁRA! Pára, por favor! Pára.

Foi essa a primeira vez que fiz o pedido. O riso já não era riso, era antes um grito e estava dentro de mim, louco, a circular dentro de mim, agudo, como um fio interminável, envolvendo-me.

Olha a rua em baixo. Vê, repara naqueles que passam, ocupados a viver, a lembrar-se, a esquecer-se de alguma coisa. Em algum momento, todos eles choraram, riram, gritaram. Mas não como tu.

Não sei quanto tempo fiquei ali, estendido no cadeirão, envolvido pelo meu grito, e assim, finalmente, adormeci. Não mudei nada no meu quotidiano. Continuei a habitar a mesma casa, o mesmo escritório, a mesma vida, da mesma forma e com os mesmos hábitos. Adaptei-me apenas a ficar quieto quando o meu grito se anunciava com os mesmos risos, de todas as vezes em que me encontrava sozinho. Com o tempo, consegui adiar por momentos a sua chegada. Dialogar com ele e atrasá-lo.

 

Precisa de mais alguma coisa? Não, menina Amélia, pode ir. 

Arruma os papéis em cima da secretária, fuma o teu último cigarro e atende mais uns telefonemas. Depois, fecha as persianas, coloca o telefone no gancho e recosta-te no cadeirão, junto à estante.

A morte para nós é a morte dos outros. A minha, apenas me apercebi dela quando o meu pai morreu. Por um mero acaso. Na generalidade não valemos mesmo nada. Fazemos a nossa vidinha, passajamo-la à nossa medida e costuramo-la a esquecimentos: um atrás do outro. Libertamos espaços para os ocuparmos nós e as nossas coisinhas. Vamos semeando mortes à nossa volta e, para tal, não há como a indiferença. A indiferença é a semente da morte e não tem nada de casuístico. Não há moral nesta história. 

Só demasiado tarde me apercebi de que também não há defesa possível. Resolvi entregar-me. Decidi solucionar a questão, sem sequer imaginar como os outros, também eles, me foram matando nos seus espaços. Que importa? É-me totalmente indiferente. Alimentei-me durante anos de tudo o que esqueci. Prevaleci sobre a memória e sobre ela construí o meu império, volumoso, senhor do meu espaço, sozinho. Apenas um grito perturbou a minha trajetória, apenas eu me desfiz em riso, como um motor que gripa, algures no meio do caminho. Se o escutei, foi porque a morte o trabalhou em mim, silenciosa. Violenta. Mas a morte é sempre violenta, sobretudo para os que cá ficam e não são capazes de esquecer.

 

Para mim, não.

Não pares. Grita. Agora. 

 

© FM (reprodução integral interdita, sem autorização prévia da autora)

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