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Contos
Grafite de Olhos

 

Sonhos cegos

 

No dia em que nasci, a minha mãe garante que, da fase mais crítica do trabalho de parto, a imagem que guardou foi a de um olho que a observava a partir de uma frincha na madeira do tecto. Um olho enorme, bem aberto, com a retina fixa nela. Um olho imóvel, no qual a minha mãe se concentrou enquanto fazia força, transferindo para ele toda a fúria, todo o medo, todo o espanto. No momento exato da expulsão, conta, a dor foi tão intensa que a obrigou a cerrar os olhos e a mantê-los assim até escutar os meus gritos de choro, enquanto se perdia na escuridão e no ardor que parecia morder-lhe o baixo ventre. Quando finalmente os voltou a abrir, o olho havia desaparecido, fechando-se e dissolvendo-se entre a correnteza das tábuas.

A casa era a dos meus avós, na Ribeira Quente, e eu bem me lembro de como rangia em dias de maior ventania, chiando como quem chora baixinho, abandonando o corpo a soluços compassados. Costumava escutá-la e senti-la assim, deitada na cama dos meus avós, a de dossel, imaginando que, se tudo voasse à minha volta, eu sempre poderia abraçar com todas as minhas forças uma das colunas e deixar as minhas pernas esvoaçar como as cortinas de tule dele suspensas. Consigo também assegurar que foram as pranchas daquele chão que me ensinaram a gatinhar, enquanto nelas pesquisava as zonas de corte e de encaixe, as fendas, as ondulações, os nódulos e os veios mais proeminentes, felicitando-me vivamente por cada chegada à união com os rodapés. Mais tarde, gostava de empurrar as portas antes de entrar em cada divisória. Devagarinho, acariciando a madeira áspera, obrigando-as a girar nas dobradiças e a fazê-las anunciar a minha entrada.

Quando a minha mãe me sentava junto de uma das janelas da casa e me deixava assim, apoiada no parapeito, eu sentia o sol aquecê-lo como me aquecia o rosto e as mãos, a chuva molhá-lo com os mesmos pingos que escorriam pelos meus cabelos. Quantas vezes segui com os dedos a azáfama das formigas nos caixilhos das janelas? Quantas vezes me agarrei a eles, inclinando-me um pouco mais para não deixar fugir o cheiro de uma flor, de um fruto, de uma árvore, de um bicho? Todas as minhas primeiras descobertas foram feitas naquela casa, naquele mundo dentro de um outro que eu sabia existir lá fora. Todas as minhas primeiras descobertas foram feitas com aquela casa, com aquele mundo questionando-me e respondendo-me sobre um outro, que eu sabia existir lá fora. Por isso não duvidei senão muito tarde de que aquelas madeiras tivessem olhos e de que um deles tivesse velado o meu nascimento. Parecia-me natural, uma verdade inabalável.

Foi exatamente no dia em que nos mudámos para a nossa casa na cidade — tinha eu para aí uns dez anos — que comecei a sonhar. Tinha havido a viagem de carro e o calor durante horas e o cheiro a cabedal dos bancos e o cheiro a transpiração, que eu procurava abafar comprimindo os braços contra o tronco; a gritaria dos homens que transportavam os caixotes pelas escadas, onde o cheiro a mofo me sossegava sobrepondo-se a uma série infinda de odores indistintos; o sofá da sala da casa antiga, no qual me aninhei sem coragem para mexer nem um dedo; o jantar rápido, do qual só estranhei os ovos mexidos entre o pão de Ribeira Quente que a avó mandara dentro de um cesto de verga; a lavagem dos dentes, com o meu dedo indicador direito a contorná-los e a esfregá-los — porque a minha mãe não encontrara a escova nos caixotes que entretanto conseguira abrir — e a pasta dentífrica a escorrer e a picar-me o queixo; e, por fim, a minha cama, a frescura da fronha e dos lençóis e o pelo roçado das bochechas do meu urso de estimação contra o meu rosto. Adormeci como sempre havia adormecido, concentrando-me num escuro cada vez mais escuro, num buraco negro que me aconchegava cada vez mais e para o qual eu escorregava distendendo cada músculo e entregando-o a esse movimento. Até então, essa havia sido a minha principal sensação de paz e de conforto, usufruída sempre que o meu corpo se confundia com as várias tonalidades de negro e eu me deixava ir sem medo. Assim se explica que, nessa noite, tenha acordado aos gritos, com os lábios húmidos e a testa alagada em suor.

Não posso dizer que fossem imagens, é certo, mas os contornos estavam lá, a definir algo no meio deles que eu jamais saberia descrever fielmente por palavras. Tentarei, no entanto, relatar como uma dança de feixes de luz se instalou nos meus olhos fechados mal adormeci, rompendo-os em todas as direções, abrindo-os a todas as cores. Suponho que não havia som, mas, caso existisse, seria o de uma trovoada súbita, marcada por cada relâmpago ressoando nos meus tímpanos até se afastar lentamente no espaço e dar lugar a um outro estrondo, bem próximo, ali, bem dentro dos meus ouvidos e da minha cabeça. Falei primeiro em dança, porque, enquanto não se dissolviam com o aparecimento de outros, os feixes de luz ondulavam graciosamente, desenhando no escuro estradas, clareiras, pontes inacabadas, escadas de caracol, teias de aranha. O fundo negro era agora como uma rua comprida, duas linhas que eu só entendia desse modo porque delas só via o fim interminável — e via-o apenas por instantes, quando interrompia o meu caminho por entre as luzes e me apercebia do volume sobre o qual se inscreviam. É curioso que ainda hoje consiga identificar esse volume difuso como aquele com que pela primeira vez me confrontei. Eu via-o, é certo, mas rasgado por outras linhas, que podiam mesmo preenchê-lo, ainda que não alterassem a bifurcação maior que o definia.

Para que consiga inventariar as cores, é imprescindível esclarecer que cada uma delas correspondia a um sabor. amarelo-limão, azul-sabão-macaco, castanho-amendoim, vermelho-sangue, laranja-laranja, rosa-pétala, verde-folha, branco-água. Só o preto não sabia a nada. Ou melhor, sabia a tudo; porque sabia a língua, à minha língua, pronta a salivar cada sabor novo, rebolando dentro da boca e abrindo-a com pequenos estalidos. Compus nessa noite a minha primeira gramática de cores-sabores, ainda isenta de formas, mas já por de mais evidente. Talvez não valha a pena confundir essa base com as ordens que criei mais tarde, como essa que define que o castanho-amendoim às vezes também é castanho-carne-grelhada — se se me apresenta mais escuro, é claro — ou que o rosa-pétala unido ao verde-folha e a um pouco de branco-água cria o roxo-chá… A verdade é que, no momento em que acordei, coberta de suor e aos gritos, o que senti foi sobretudo um medo hilariante, descompensado, descoordenado. Julgo que não o terei querido dizer à minha mãe, enquanto ela me apertava contra o peito, mas o meu medo era antes euforia, uma euforia indizível e transfigurada no meu rosto. É digno de interesse apontar a única frase com que a descrevi: "Tenho os olhos cheios de vistas."

Por muitas vezes, nos dias, nos meses, nos anos que se seguiram, pensei que a única explicação possível para tão estranha ocorrência era a forte probabilidade de ter trazido dentro de mim o grande olho da casa da Ribeira Quente. Ou de ele ter vindo comigo, por iniciativa própria, para se abrir à noite, sempre que eu fechava os meus olhos. Tal como acontecera quando a minha mãe cerrara os dela e, nesse exato momento, se abrira para me deixar sair. Do escuro para a luz. De dentro para fora.

Alinhadas e referidas as convicções anteriores, não sem uma nota suave de incredulidade, convém notar que foi por causa delas que me pareceu também evidente que era uma dádiva suprema poder sonhar todas as noites. Devia, pois, concentrar os meus esforços nessa vivência, fazendo-a preceder de incansáveis tarefas diurnas de preparação. Para que pudesse fruir mais e mais cada esboço de imagem, de luz e de cor, os meus sentidos deveriam estar em permanente estado de vigília, alerta e absorção.

A casa nova, com todos os seus recantos, contornos, volumes, saliências, cheiros e sons inexplorados, apresentava-se-me agora não como o inferno assustador das primeiras horas, mas antes como um paraíso transbordante de sensações virgens e por isso facilmente conversíveis  em sonho. Como fruto das minhas explorações, rapidamente juntei à cartilha de sensações da casa velha, por esta ordem e nomenclatura, um Pan-Óptico de Cheiros, uma Galeria de Prismas Tácteis, um Esferímetro de Sons, uma Câmara de Sabores e um Refractómetro de Feixes Luminosos. Graças a eles, os meus sonhos foram-se gradualmente apurando, num desafio atordoante de esboços de imagens com cheiro, som, peso, tamanho, medida, variações de temperatura,  sombras e, luxo dos luxos, inefáveis transparências.

Se hoje consigo contar tudo isto com uma ordem e uma lógica, se não fiéis, pelo menos verosímeis, já me é de todo impossível explicitar qual o momento em que o dia e a noite se fundiram num só e passei a sonhar acordada. Se me ficar pela solução mais fácil, posso situá-lo nessa primeira fracção de segundo em que adormeci na casa nova. De qualquer forma, trata-se de um pormenor de somenos importância. Tantas vezes cheguei à conclusão de que sonho porque vivo e vivo porque sonho, que já não faz qualquer sentido procurar conhecer a génese desta bifurcada evidência. Talvez o sonho seja hereditário e tenha a forma de um olho. Que nos olha de cima, apreendendo-nos como nessa ilusão óptica a que, aposto que inadvertidamente, demos o nome de irradiação: preto no branco, branco no preto. Hoje sei: só é cego quem não quer ver.

 

© FM (reprodução integral interdita, sem autorização prévia da autora)

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