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Foto do escritorFilipa Melo

Wilkie Collins – Um Livro Por Dia



Mister e mistério

Foi uma super-estrela da ficção vitoriana. 150 anos após a publicação da obra-maior, A Mulher de Branco, Wilkie Collins sai da sombra do seu amigo Charles Dickens

«Esta é a história do que pode suportar a paciência de uma mulher e do que pode conseguir a perseverança de um homem.» Esta é a história secreta de um crime que devia ter sido julgado, mas não foi, porque, em certos casos, bolsas recheadas significam a submissão da lei. «Assim, a história tem de ser contada aqui, mas o leitor conhecê-la-á exactamente como a ouviria o juiz.»

Com este arranque, no Inverno de 1859, Wilkie Collins (1824-1889) conquistou de imediato a atenção dos leitores da revista literária semanal All the Year Round, fundada um ano antes pelo seu amigo Charles Dickens (1812-1870). O folhetim, A Mulher de Branco, correspondia ao mote promocional da publicação: «The story of our lifes, from year to year», citação retirada de Otelo, de Shakespeare.

Arquétipo do sensacionalismo, A Mulher de Branco inaugurou também um método particular de desenvolvimento da narrativa, precursor do romance de mistério. No caso, o enigma era o da destruição da identidade de uma mulher ao serviço da exploração das semelhanças físicas de uma outra mulher com ela. Apresentado numa curta primeira parte (definida pelo autor como «primeira época»), o enigma seria habilmente revelado na segunda parte/«época», a da recuperação da identidade perdida. Semana após semana, os antecedentes, enquadramento e sequência desta «conspiração da vida privada» foram revelados aos leitores por ordem cronológica, a partir do depoimento retrospectivo alternado de várias testemunhas, apresentadas logo de início pelo narrador como «fidedignas». Passados 150 anos sobre a edição da versão completa de A Mulher de Branco em livro (1860), o romance regressa às livrarias portuguesas, pela Relógio D’Água (que edita também A Pedra da Lua, de 1868, ficção-matriz de algumas das principais convenções do romance de detectives). Reabilitado pela crítica e pelos leitores, Collin sai por fim da sombra dos imensos génio e popularidade de Dickens e, tal como defendeu Henry James, resgata «o mérito de ter introduzido na ficção os mistérios mais misteriosos, os mistérios que acontecem diante da nossa porta.»

A linha editorial aplicada por Dickens em All the Year Round era revolucionária na tentativa de aproximação aos interesses do leitor comum. Sob a capa da austeridade e moralismo vitorianos, fervilhava nas ruas uma lúgubre teia de intrigas e reveses, alimentada por sumarentas suspeitas ou confirmações de casos de adultério, identidades falseadas, loucura, toxicodependência, práticas sádicas ou crimes passionais (sobre as dimensões secretas da sexualidade e do espiritismo vitorianos, vale a pena ler os romances Toque de Veludo e Afinidade, de Sarah Waters, uma das vozes mais interessantes da actual ficção britânica). O realismo do imediato dickensiano correspondia em pleno a uma certa adesão à verdade factual e manifesta da experiência quotidiana. A classe média que agora devorava jornais e revistas, de certo modo, ditava o rumo das querelas estéticas. O ideal naturalista «escrever as coisas como vós vistes e as coisas que são», defendido pelo escritor, crítico de arte e crítico social John Ruskin (1819-1900) era acompanhado pela defesa do sentimento gótico e do organicismo contra a desumanização mecânica. O realismo associava-se a uma certa excitação da irracionalidade, até a um certo gosto pelo feio. Na ficção, irrompia a vida imperfeita das pessoas contemporâneas vulgares. Ao apresentá-la como mistério, Collins cativou milhares de fãs.

Contraditoriamente, o estilo sensacionalista de Collins não colheu o agrado generalizado dos críticos e A Mulher em Branco acabou por ser o único ponto verdadeiramente alto de uma bibliografia com mais de trinta romances, cerca de setenta e quatro contos e peças de teatro, quase cem títulos de não-ficção. À distância, pode mesmo julgar-se que o crédito que os meios intelectuais da época dedicaram a Collins se deveu sobretudo à cumplicidade que manteve com Dickens durante os últimos dezanove anos de vida do autor de David Copperfield. Amigos íntimos, Collins e Dickens formaram uma dupla criativa em vários projectos e partilharam, até ao fim, a queda para complexos enredos sentimentais secretos, jogos de duplicidade e surpresa que ambos exercitaram tanto na vida real como na ficção (são conhecidos vários casos extra-conjugais de Dickens, nomeadamente com uma das irmãs da mulher e com a actriz Ellen Ternan, com quem viveu maritalmente após o divórcio, em 1858; Collins nunca casou e manteve, durante vinte anos, duas relações amorosas em simultâneo). Quanto ao estilo, reconhecia-se apenas em comum o sentimentalismo gótico e um grande poder de caracterização dramática, contrariado em Collins pela subserviência à criação e elucidação de um mistério (opinião defendida por um crítico anónimo americano logo em 1872).

Collins pode ter sido um dos mais bem pagos e populares ficcionistas, contistas e jornalistas vitorianos, mas foi também a primeira vítima da catalogação negativa imediata do sensacionalismo – que resultaria no estigma ainda duradouro sobre o melodrama, o enredo de apelo emotivo, a literatura fantástica e de horror e, sobretudo, o romance policial. O contemporâneo Anthony Trollope (1815-1882), por exemplo, ainda definia como ideal a conjugação do romance provável ou realista com elementos sensacionalistas, mas, em definitivo, excluia Collins desta hipótese. Acusações principais: a planificação prévia e quase obsessiva do desenvolvimento do enredo e a sujeição total das personagens às peripécias, em nome da decifração gradual de um mistério. E, na verdade, Collins espartilhou sempre as suas ficções em prol da manutenção do interesse do leitor, bem à maneira de um folhetim popular. O certo é que, 150 anos depois, A Mulher de Branco ainda suscita uma leitura compulsiva. Mais: apesar de um fatalismo e determinismo gastos pelo tempo, a prosa de Collins revela-se imbuída do espírito da melhor ficção vitoriana. Se assim o não fosse, alguém acredita que Dickens, como o fez, a elogiaria?

Mais do que sensacionalista tout court, Collins foi artífice de um método ainda hoje útil para qualquer candidato a escritor. A chave pode estar na defesa de que «o principal elemento de atracção numa história é o interesse da curiosidade e a excitação da surpresa». A raiz, encontramo-la no dispositivo do romance de enredos múltiplos, resposta prática às exigências da forma desconexa do folhetim (Dickens definiu-o como uma tapeçaria cujo «desenho geral» resulta do entrelaçamento de várias linhas narrativas). Com a estrutura reconhecível de um romance epistolar, A Mulher de Branco apoia-se na exploração de diferentes fases cronológicas de um enredo intricado, apresentadas, de fora, por testemunhas que as descrevem com um «realismo minucioso embora selectivo» (Alastair Fowler). Como num jogo de xadrez, os movimentos são antecipados muitas jogadas antes de terem lugar. Collins explicou: «Quanto à minha técnica de escrita, tenho quatro regras. Primeiro, a ideia principal. Em segundo, o final. Em terceiro, o início. A dificuldade em levar a cabo esta última regra é o facto de termos sempre que começar pelo início! Qualquer um que consiga resolver isto será também capaz de cumprir a quarta regra: devemos ser sempre capazes de fazer a história progredir.»

Vários contemporâneos testemunham a ética e o preciosismo do labor literário de Collins (herdados do pai, um respeitado pintor de paisagens). A maioria dos seus manuscritos é quase indecifrável, devido à sobreposição labiríntica de correcções e anotações sobre a primeira versão do texto. No prefácio de A Pedra da Lua, o romancista indica que A Mulher de Branco corresponde ao período em se propôs estabelecer «a influência das circunstâncias sobre o carácter», e sabemos hoje que a construção da história se baseou em casos reais. Assim, com minúcia formal, Collins submeteu em absoluto a construção das personagens ao desenlaçar do enredo. No entanto, este condicionalismo quase delirante obrigou-o a atribuir a algumas delas especificidades raras, precisamente o que lhes garante lugar entre as melhores criações da ficção vitoriana: a desdenhosa cortesia egocêntrica de Frederick Fairlie, a fealdade de Marian Halcombe transformada em generosidade e nobreza empáticas ou o carácter diabólico do notável conde Fosco, contraditado pela dedicação que reserva aos seus canários e rato de estimação e pela sua admiração secreta por Marian. Aos heróis e actores principais do drama sentimental (Walter Hartright, Sir Percival, Laura Fairlie/Glyde e Anne Catherick) foi concedida menor espessura, talvez porque não seria deles o protagonismo da revelação dos «pormenores da verdade».

Em A Mulher de Branco, a verdade real ao gosto do realismo vitoriano é apresentada como um segredo inconfessável, revelado de través por várias testemunhas, de modo sensacionalista. «Mestre da trama e da situação», como o apelidou T. S. Elliot, Collins faz magia quando manipula as expectativas do leitor sobre o crédito da versão de cada narrador. Ainda não liberto dos constrangimentos do sentimentalismo e da tónica moral, o escritor mascara a realidade com ornamentos e artifícios, mas apenas para a confundir com a aparência e acentuar a demonstração final do seu lado mais sombrio. Em alguns momentos, a morbidez do melodrama é sugerida por pormenores físicos e «cenas atmosféricas poderosamente visualizadas» (Alastair Fowler), tão intensas que se aproximam da linguagem do sonho (ficará para sempre por esclarecer até que ponto a criação de A Mulher de Branco terá sido influenciada pelo coincidente início de dependência do escritor do láudano, usado para aliviar o padecimento de gota reumática). A narração, aparentemente descontraída e simples, progride em proporção com a inquietação do leitor. Virada a última página, A Mulher de Branco confirma-se como uma experiência de leitura difícil de esquecer. 

LER/ Fevereiro 2010 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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