Pim, pam, pum
Ao Afonso Praça e ao Fernando Assis Pacheco
Nambuangongo, Angola, Junho de 1963
Quando se mata, morre-se? Não. Renasce-se. Porque, na verdade, não fui eu quem morreu há pouco, quando senti o primeiro coice a atingir-me no ombro. O dedo não parou de dar ao gatilho, duas, três, mais vezes. Os olhos não pararam de ver enquanto os corpos se erguiam ou tombavam por entre a névoa. Os ouvidos não pararam de ouvir.
Já tinha escurecido e estava a ficar mais frio. A chuva parara e uma brisa suave e quente remexia as folhas. Isso foi antes. E imediatamente depois. No meio, apenas um som ruidoso de mais, intenso de mais, repercurtindo-se para lá do embate nos corpos, nas árvores e no solo, projectando-se até ao céu. Era o som que se elevava, não os clarões da trajectória cruzada das balas ou da chuva de granadas-de-mão ou dos morteiros 82 a rebentarem nas copas dos imbondeiros. Era o som que, em torno de mim, suspendia os gestos na rapidez de cada ataque e de cada esquiva. Era o som que furava as nuvens e as obrigava a apartarem-se. Eu ouvia-o algures cá dentro, estilhaçando cada célula e cada nervo e transformando-se num desejo imparável de matar. Um. Dois. Três. MAIS! Uma ladainha, um refrão dos meus nervos, um monstro a devorar-me o cérebro: pim pam pum, cada bala mata um…
Os corpos em frente eram apenas bonecos de corda desarticulados pelas minhas mãos. Mãos cruéis de criança curiosa. Agora um braço, PIM! Agora uma perna, PAM! Agora uma cabeça, PUM! Agora eu, cada vez mais forte, cada vez mais possante, montado a galope no cavalo de pau da G3 a escoicear no meu ombro. Eu e a minha vontade elástica de disparar o medo e de o rebentar por dentro, com um estrondo suficientemente forte, suficientemente igual ao que me estoirava os ouvidos antes de se perder dentro de mim. Eu, cada vez mais vivo. Eu, sozinho, embriagado de mim mesmo, a avançar por entre um emaranhado de árvores nuas e corpos desfeitos. Eu, com as amarras cortadas. Eu, decidido a matar tudo o que estava fora de mim. Eu, a ir até ao fim.
Quando se mata, ensurdece-se. E há vozes vindas de longe e de perto que chocam entre si, confundidas pela ausência de palavras e pela inutilidade dos gritos. Por isso é impossível dizer a morte se não respondendo-lhe com um som igual, desabitado e surdo. Um gorjeio cru como o rebentar de um cérebro em borbotos de sangue, miolos e cabelos: Morre!
MORRE! Quero que sejas só a sombra que em frente vejo diluir-se como a chuva dissolve a terra e a faz cheirar a bicho. Quero ser eu o bicho que mata, o bicho que sobrevive, percebes? PERCEBES? Não importa se tu também tens um brinquedo como o meu e mo apontas a mim no escuro. PUM! Não me importa se corres para mim de peito aberto e gritas: «Bala não mata! Bala não mata!» Vais saber a verdade; a tua cabeça é um berlinde que os meus dedos disparam com um tiro só. PUM! Vês agora? Eu sou o bicho mais rápido, o bicho mais forte, o bicho que já não vê, só ouve. ESCUTA. A morte é como o bater do coração que sentimos a latejar nos membros todos, um coração do tamanho da parada, com forma de bicha pirilau a avançar pela mata e pronta a estrebuchar às guinadas, enrolada sobre si mesma, a esconjurar a «Pátria Amada» na berma de uma picada qualquer. «Porra p’ra esta merda, nunca mais despacham isto!» Eu só quero acabar isto e espetar o focinho da espingarda na terra e renascer abraçado a ela como a um brinquedo que mais ninguém tem. Embalá-la em silêncio enquanto eles não chegam. Somos só nós dois os naúfragos neste mar de mortos. Não há mais ninguém.
Vamos brincar a «ver quem fica morto mais tempo» e perde quem abrir os olhos. Agora eu. E o meu dedo-gatilho, encostado à têmpora e pronto a atirar. Só mais uma vez. PUM. Uma bala encurralada dentro de mim e eu capaz de rir à gargalhada. Capaz de morrer a rir. Uma bala a estraçalhar-me as entranhas com dentadas metálicas, enraivecida por não encontrar a saída. Uma bala só, cumpridora: pim pam pum, cada bala mata um… Isso foi depois. No meio, era o meu dedo no gatilho a disparar a morte aos coices, a distribuí-la à vez. Quem quer mais? TOMA! Estás morto. E não vale levantares-te de novo, eu não páro. Eu estou mais vivo do que nunca e ninguém me pára. Quando se mata, renasce-se.
MORRE!
Eu fico. E continuarei a ser. Um dia, longe da náusea deste cheiro a tédio, a sangue, a pólvora e a medo, descerei do cavalo e a noite estará calma e a ficar fria, só com uma brisa suave e quente a remexer as folhas e nem isso chegará para abafar o silêncio. Um silêncio definido e seco, cacimbado. Límpido e inteiro como eu e o meu corpo. Então sim, terei matado e morrerei.
Mas, para já, escavo o meu abrigo com a baioneta da espingarda. Vou ser eu mesmo a abrir a minha cova, a disparar o «coup de grâce». Eu sou o meu próprio caixão. Quando se mata, fica-se sem nada e parte-se sozinho. Sou um miúdo com os bolsos furados. Espalhei os tesouros enquanto marchava no pó.
Como o que resta da ração de combate, lata de anchovas ainda mais apimentada pelas formigas, maning bom! Não procuro nada, não quero encontrar nada. Não tenho nada que me prenda aqui, a este buraco de nada no meio de mapa nenhum. Um jornal A Bola de há um mês, limpo o cu nas tácticas nacionais. A garganta a uivar de sede. Na cabeça, o sol a pino. Deixem-me só seguir. AFASTEM-SE! Quero andar até as minhas pernas explodirem. Deixem-me em paz. Por favor, deixem-me em paz. Já não jogo mais. Para mim, a guerra acabou. Eu serei um dos vossos troféus, não me importo. Desde que me deixem sair daqui. DEIXEM-ME IR! Suplico.
Foi ainda há pouco e eu lembro-me. Aos solavancos no unimogue, abrimos pela noite como traças à procura da luz. Os tugas que arrumaram os turras. Trazemos connosco o Sesimbra e o Américo já cadáveres desarticulados e o Sousa está mais p’ra lá do que p’ra cá, tem o bucho aberto num buraco do tamanho de um punho. Mas vingámo-los bem. Somos os «filhos da Pátria» que deram cabo dos «filhos da puta». Adeus mãe, até ao meu regresso. Vim de matar e morrer. Sou bravo e valente, um homem crescido. Mas queria a tua mão a afagar o meu cabelo. Sentar-me ao teu colo e enterrar o meu rosto nas tuas mamas quentes. Morder os teus mamilos e sorver leite a saber a sangue. Deitar-me na camarata contigo.
NÃO VÁS! Quero morrer e matar de prazer. Eles não sabem nada, não vão saber. Que te vou fazer um filho para o império. Semear em ti uma emboscada, uma bomba-relógio. Eu sou mais eficaz do que uma mina. Estou a rebentar de seiva, mais esganado que os cães. De gatas, imploro-te: Não vás… De que serve este membro na minha mão, a minha arma? A pátria a latejar neste pedaço de carne, toda contida nesta tesão de raiva. Vou cair sobre ti como numa «queda-na-máscara», as pernas flectidas para amortecer o impacto. Cheiras a bicho e és a minha mãe preta. Vais pôr fim à minha guerra quando eu te ocupar toda com a minha pulsão de morte. Vou-te encher de mim e fazer estoirar esta cova opaca onde me escondi. VEM!
Tenho um caixão à minha espera e é muito apertado para mim. Um rectângulo de merda, plantado à beira do mar. Quatro paredes caiadas de negro, com o retrato de um homem impotente na parede. Injectou-nos ar nas veias, insuflou-nos com o orgulho nacional. «Quais forem as dificuldades que se nos deparem no nosso caminho, os sacrifícios que se nos imponham para vencê-las, não vejo outra atitude a tomar que não seja a decisão de continuar.» Rapidamente e em força. Portugal! Portugal! Angola é nossa! Angola é nossa! ANGOLA É NOSSA! Que importa se a mata grunhe: Upa! Upa! Upa! Viva! Viva! Viva! Preparem as espingardas. Eles afiam as catanas com limas. Havemos de nos encontrar no meio da mata, no centro do anel de fogo. Vou espetar a tua cabeça numa estaca. Depois de jogar à bola com ela. Exibir-te à beira da estrada como aquele que não ressuscita. Estás morto, mortinho da Silva. Entrei no nicho do deus zumbi a cavalo da «reacção operacional». A cavalo de mim. Eu sou uma vala aberta e o meu nome é Portugal. VEM!
O nevoeiro chegou de mansinho. Esta é uma guerra sem quartel. Mucondo, Quicundo e Muxaluando… Quixico, Quipedro. Zala é já aqui e o Sagrado Coração de Maria continua connosco. Temos uma bandeira para içar. Portugal! Portugal! Portugal! Ainda sonho com o calor, colado à nuca como um escarro. Sinto a mata a vomitar-me, as espinheiras a rasgar-me os braços e a cara. Este é um ângulo morto, e eu um estilhaço em fragmentação. Uma bisca lambida no meio do nada. Os meus olhos viram tudo, não os consigo arrancar. Já não leio o terreno em frente, estou em posição de rajada e não sei para onde atirar. Escuta só, não mexas o dedo no gatilho. Agarra! Agarra! Agarra! As botas batem no chão duro. A malta enfia-se nas valas. Cheira a urina e a fezes. Havemos de os vingar. Vai ser um ataque de mão. Agora. AGORA!
Mãe?! És tu, a costurar noite fora? É a minha mortalha o que coses? És tu que rezas no escuro? Calou-se o matraquear e posso ouvir-te melhor. Quando se morre, sabe-se. Tu sabes o que eu vim cá fazer. Diz-me. Eu não me mexo, juro. Não me mexo. JURO! Quero ficar aqui quietinho, o corpo moldado na lama, só mesmo a olhar para ti. Deram-me um cavalo manco e as esporas cravadas em mim. Mãe, venho de matar e morrer. Eles estão mesmo a chegar. Não os deixes fechar-me os olhos. Vou ficar aqui quietinho, só mesmo a olhar para ti. E para as nuvens à desfilada. Ordem-unida.
© Filipa Melo
(reprodução integral interdita sem autorização prévia)
Comentários