Mortos de Nova Iorque
No ensaio «A Arte de Viajar», o filósofo Alain de Botton assegura que «as viagens são as comadres do pensamento». Por isso, explica, os guias turísticos são de ínfima utilidade se comparados com as lições da arte e da cultura. Foi com essa convicção que, em 2001, a editora britânica Bloomsbury criou a excelente série «O Escritor e a Cidade», para a qual autores como Edmund White, David Leavitt ou John Banville compuseram a sua visão sobre cidades como Paris, Florença e Praga. Na edição portuguesa da colecção, pela Asa, surge agora «Nova Iorque, Cidade Fantasma», um insólito retrato ficcional da Grande Maçã, assinado pelo escritor inglês Patrick McGrath.
Aqui, a verdadeira alma de Nova Iorque não é ofuscada pelo brilho das montras, dos arranha-céus espelhados ou do espectáculo da diversidade das gentes que a habitam. Nestes três contos que cobrem desde do século XVIII até ao 11 de Setembro, a cidade é antes habitada por fantasmas que saem dos ventiladores rente ao chão, a lembrar as pilhas de mortos infelizes que cimentaram a grande metrópole. Grath é fiel à psicologia macabra e ao gótico moderno dos seus romances (alguns traduzidos pela Presença) e, como sempre faz, propõe histórias narradas na primeira pessoa por personagens que apenas nos dão uma das versões possíveis para o que é contado.
Fala primeiro um sobrevivente da Guerra da Independência, ensombrado pela culpa no enforcamento da sua mãe, que servira de correio ao General Washington. Já no século XIX, prestes a morrer de peste, diz: «Tenho vivido na cidade, uma experiência angustiante porque Nova Iorque se tornou um lugar não propriamente de morte, mas de terror da morte.» Segue-se a longa narração da neta de um pintor que ela acredita ter sido responsável pela loucura de Julius van Horn, o herdeiro de uma das grandes fortunas da explosão mercantil do século XIX cuja paixão por uma emigrante irlandesa fora contrariada pela arrogância do dinheiro novo. Ao inesperado tom datado desta história, sucede-se um delirante e trágico enredo sobre a «responsabilidade» traumática dos sobreviventes e o «potencial de devastação» dos embates nas Twin Towers sobre os nova-iorquinos. Relatada por uma psiquiatra, a história completa o retrato de Nova Iorque por Patrick McGrath: um mapa de fantasmas e «tristeza desamparada».
Nova Iorque, Cidade Fantasma, Patrick McGrath, Edições Asa, 272 págs.
SOL/ 03-11-2007 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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