Reinvenção da História, da frase e da ficção ao serviço da reinvenção do Homem. A obra literária de José Saramago exprime a consistência da sua esperança numa determinada afirmação ética e humanística.
Um homem com uma moldura ética e ideológica, solitário, extraordinariamente perseverante nos seus ideais e objectivos. E um homem que escreve, com uma determinação rara, forjando uma voz original. São duas faces indestrinçáveis do mesmo homem: José Saramago, criador de 35 obras de ficção, poesia, diário e crónica, ensaio, literatura infantil, teatro e texto operático. Um escritor que se estreia aos 25 anos (com o romance Terra de Pecado) e depois fica quase em silêncio durante trinta (apenas, garantiu, porque entretanto «não tinha nada para dizer»), para depois iniciar de facto a afirmação plena como autor, Levantado do Chão, aos 58 anos.
Até ao fim, Saramago desafia os cânones estilísticos e o registo da História na ficção. Neto de camponeses, autodidacta, sobe a vida a pulso até chegar ao Prémio Nobel da Literatura e, num dos discursos mais políticos proferidos perante a Academia Sueca, afirmar a sua concepção humanista, a sua ligação umbilical a uma «moral proletária do trabalho» (Baptista-Bastos). Nesse ano, 1998, diz-me: «Sei que sou capaz de grandes amizades, sempre poucas. Ao longo da vida, teria gostado de ter grandes amigos, e não os tive quando precisaria deles… Sempre vivi muito isolado. Lembro-me de ter dito numa carta que, há uns quatro anos, escrevi ao Eduardo Lourenço: “Leva em conta que, como escritor, eu sou como os pretos e as mulheres: tenho que valer duas vezes para ser reconhecido uma.” Entende? Se há luta, nem sequer se trata do facto de eu ter lutado para chegar a valer duas vezes e ser reconhecido uma. É antes esta consciência que eu sempre tive: “Meu caro, já sabes, não tenhas nenhumas ilusões, a ti ninguém te aceitará como tu és. E, para que te aceitem, tens que valer duas vezes aquilo que, em determinado momento, estás a conseguir. Valer uma vez só não é suficiente; pode sê-lo para toda a gente, mas não para ti.”»
Reconhecer-se-à em toda a sua bibliografia o enfoque absoluto das narrativas nas questões ontológicas das personagens, na consciência aguda do mundo que as rodeia, na maioria das vezes injusto, terrível, mas passível de transformação. «Ler Saramago proporciona a cada um o melhor entendimento de si e dos outros: nos seus romances, [há] uma mágica voz a dizer-nos quem somos e o que deveríamos ser», defendeu a ensaísta Beatriz Berrini.
Surge primeiro um narrador que, no seu presente ficcional, indaga, interpreta e interroga o passado português (Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989). Depois, o amor a Portugal, os romances, abrem-se a considerações universais, vastos e provocatórios painéis de reflexão sobre a condição humana (Ensaio sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, Caim, 2009). Embora o autor apenas aceitasse a presença explícita de elementos autobiográficos no romance Manual de Pintura e Caligrafia, é Saramago ele mesmo, o homem que pensa o mundo à sua volta de um modo singularíssimo, quem dá a forma a todos os livros e afirma: «De uma maneira geral, a pessoa que eu sou está lá. Quando eu defendo, meio a sério meio a brincar, que todos os meus livros deviam levar uma cinta a dizer: “Atenção, este livro leva uma pessoa dentro”, é isso mesmo que quero dizer. Podem não estar lá os factos da pessoa que o autor é, mas o autor está lá; e, no meu caso, está lá duplamente e triplamente.»
Após abandonar em definitivo a poesia (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970), Saramago coloca a seguinte frase na boca de H., protagonista de Manual de Pintura e Caligrafia, um pintor em crise que procura expressar-se por palavras: «Viajo devagar. O tempo é este papel em que escrevo.» Começa precisamente aí, neste interessantíssimo romance autobiográfico sobre a expressão artística, a aventura da invenção saramaguiana. A fluidez, o ritmo da expressão do narrador quase sem nome implicam saltos contínuos no tempo e no espaço e servem a avaliação interpretativa, a filtragem subjectiva, a objectivação e inversão da realidade presente e passada. O texto começa a falar, numa encruzilhada de registos narrativos, reiterações e repetições. Em Levantado do Chão, o ponto final e a vírgula são já meros «sinais de pausa» num esforço de aproximação do texto à oralidade.
O autor dirá mais tarde que a sua prosa «deve ser lida em voz alta». A subversão da pontuação acompanha a subversão do real através de alegorias e metáforas. Eleva-se sobre tudo a utopia de uma voz que enuncia a sua busca de respostas para problemas concretos do homem e do mundo enquanto narra as experiências das personagens no tempo e espaço da ficção («As personagens dos meus romances são comuns, aquilo a que eu chamo “vidas desperdiçadas”», JL, 18/01/1983). A torrente das palavras escritas-ditas pretende estabelecer-se num diálogo com um leitor sensível à sua manifestação poética e ao questionamento da História através da imaginação, até mesmo do fantástico, do maravilhoso ou do apocalíptico (intenção superiormente atingida em Memorial do Convento ou Ensaio Sobre a Cegueira; falhada no registo fantástico de A Jangada de Pedra ou na parábola de A Caverna). A ficção de Saramago interpela o leitor, provoca-o, pode até chocá-lo ou tão só satisfazê-lo esteticamente, mas, sobretudo, exige-lhe atenção.
Pesquisador incansável, o escritor procede a uma fértil exploração linguística, enquanto sustenta com detalhe e rigor as referências históricas e as intertextualidades (notáveis no brilhante jogo de máscaras de O Ano da Morte de Ricardo Reis) presentes na sua ficção. A partir de História do Cerco de Lisboa, Saramago garantiu ter-se empenhado na «desbarroquização da linguagem», aliviando a extensão da frase e a ligação entre o discurso directo e o indirecto. Procurando auto-superar-se, experimentará, por exemplo, a paródia e o humor (sobretudo, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, As Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante, 2008, e Caim, o último romance) como inovação no seu universo estético, mas também como provocação a um discurso oficial e convencional, ao que condena como conformismo ou lugar-comum. Os objectivos artísticos seguem sempre de perto os objectivos existenciais, ideológicos e humanistas, todos impregnados daquilo a que José, o revisor de História do Cerco de Lisboa chamou o «sentido da emenda» e que o escritor identificará como «meditação sobre o erro» (no geral, sentenciosa).
É sem dúvida árduo o percurso obstinado do escritor que, no seu incessante questionamento do Poder, chega a ousar a intervenção ‘em nome de Deus’ junto dos homens (In Nomine Dei, peça de teatro, 1993). Provavelmente, terá também de ser árduo e obstinado o caminho do leitor que se aventure à leitura de toda a obra. Saramago garantiu várias vezes que a visão súbita e misteriosa do título de alguns dos seus romances foi acompanhada pela revelação da arquitectura inteira das tramas romanescas. O mistério da literatura serviu-o, pois, nos seus objectivos estéticos e nos mais concretos: criar uma voz e fazê-la ouvir. Na inquestionável grandeza da sua capacidade narrativa uniram-se tese e invenção, vida e obra, indestrinçáveis. Nela se cumpriu em pleno, o que, logo aos 18 anos, o José Saramago serralheiro mecânico, leitor voraz nas horas vagas passadas na Biblioteca Municipal das Galveias, terá assegurado para si próprio: «Aquilo que tiver de ser meu, às mãos me há-de vir ter.»
SOL/ 25-06-2010 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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