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Luís Fernando Veríssimo & Miguel Sousa Tavares



UP – DIÁLOGOS ATLÂNTICOS

Luís Fernando Veríssimo & Miguel Sousa Tavares

São ambos escritores e filhos de dois ícones da literatura em língua portuguesa. A prosa de ambos celebrizou-se na imprensa e ambos usam a ironia como arma de expressão.No trato social, um é tímido e contido, o outro, tem temperamento intempestivo. Num encontro vibrante, no lisboeta Hotel Pestana Palace, o brasileiro Luís Fernando Veríssimo e o português Miguel Sousa Tavares falaram sobre história, política, memórias pessoais, literatura e sexo. E uniram Portugal e o Brasil como símbolo de irmandade.

Luís Fernando Veríssimo

Nasceu em Porto Alegre (1936), onde ainda hoje vive, com a mulher, Lúcia. Tem três filhos. Com mais de 60 títulos editados, é um dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade, reconhecido mestre da sátira de costumes, praticada sobretudo em crónicas na imprensa, mas também em cartoons e textos de humor, em séries de televisão, em peças de teatro e em romances bissextos. Apaixonado pelo jazz, toca saxofone, às vezes em público. Tímido, muito avesso ao contacto público, é feroz e divertidíssimo no domínio da palavra escrita. É filho do escritor Érico Veríssimo (1905-1975), um dos maiores ícones da literatura brasileira do século XX. Em «O gigolô das palavras», uma das suas crónicas mais aclamadas, defendeu: «A Gramática precisa de apanhar todos os dias para saber quem é que manda.»

Miguel Sousa Tavares

Jornalista e escritor português, nasceu no Porto (1952), onde passou a infância e a juventude e de cujo clube de futebol é um adepto ferrenho. É filho da grande poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). Abandonou a advocacia pelo jornalismo, dirigiu revistas e firmou-se como um dos mais brilhantes e aguerridos cronistas e comentadores políticos portugueses. Após publicar livros de reportagem, crónicas e histórias de viagens, estreou-se no romance, em 2004, com Equador, sobre os últimos anos da Monarquia em Portugal e na colónia de São Tomé e Príncipe, best sellertraduzido em mais de uma dezena de línguas. Tem três filhos, os seus livros para crianças integram o Plano Nacional de Leitura e é um excelente cozinheiro, dizem os felizardos que, em privado, provam os seus pratos.

UP: O filósofo e poeta português Agostinho da Silva (1906-1994), após mais de vinte anos de exílio no Brasil, dizia que «o brasileiro é o português à solta». Concorda, Luís Fernando?

LFV: Concordo um pouco. Temos a impressão de que Portugal é um país pequeno, estreito, mais restrito, e de que os portugueses falam muito rápido e, às vezes, engolem uma consoante ou outra. O brasileiro é o português com mais espaço.

UP: Em 1959, o seu pai, o escritor Érico Veríssimo, veio pela primeira vez à Europa e viajou primeiro por Portugal, em plena ditadura do Estado Novo, consigo, então com 22 anos, com a sua mãe e com o poeta Jorge de Sena. No relato que fez em Solo de Clarineta, descreve-o a si, «encolhido dentro de um sobretudo gris», escutando os grilos noturnos nas ruínas romanas de Conímbriga…

LFV: Sim, era Fevereiro, fazia muito frio e visitámos Portugal de cima a baixo. Lembro-me de que, noutra noite, num hotel de uma cidadezinha perto do Porto, ouvíamos os uivos dos lobos. Foi muito impressionante.

UP: Na época, o clima político era bem soturno e de grande revolta contra o ditador Oliveira Salazar.

LFV: O meu pai veio fazer uma série de palestras que acabaram se transformando em comícios políticos. A PIDE [polícia política] deu-se conta disso e, na segunda parte da viagem, a reação da plateia já foi mais ou menos controlada. Houve uma recepção na embaixada brasileira em Lisboa (o embaixador era Álvaro Lins), onde o general Humberto Delgado [líder do, então, principal movimento oposicionista] estava refugiado, sob asilo político, e por isso não podia aparecer. Foi tudo muito intenso.

UP: O seu pai conta que examinou consigo o problema político de todos os pontos de vista.

LFV: Apesar do clima pesado, foi uma satisfação ver a atuação do meu pai. Ele era introvertido, nada interventivo ou de grandes exposições, mas se saiu muito bem, defendendo a democracia e a liberdade de expressão, com grande tranquilidade e, ao mesmo tempo, com grande consequência política. Isso deixou-me muito orgulhoso.

MST: Portugal e o Brasil andaram quase sempre desencontrados: ou havia ditadura lá, ou havia cá. Nesses anos, já havia democracia no Brasil. Mas, quem quiser conhecer o ambiente político português dessa altura, visto por um brasileiro, deve ler Missão em Portugal, de Álvaro Lins, que foi um dos meus livros de formação política.

LFV: Ele era também um excelente crítico literário.

MST: Era um embaixador à maneira antiga, quando as coisas ainda não eram multilaterais e o embaixador representava o país e era a testemunha privilegiada no local. Foi uma época de ouro da diplomacia, na qual o Brasil sempre teve uma grande tradição.

UP: Érico Veríssimo, por exemplo, referia um antepassado português que, 150 anos antes, partira para o Brasil, para explicar por que se sentia «em casa» em Portugal. Sem essa raiz familiar, o que une de facto portugueses e brasileiros?

LFV: A nossa história, desde os Descobrimentos, e a nossa língua. Se bem que a gente, às vezes, tende a dizer, como alguém disse sobre a Inglaterra e os EUA, que são dois países divididos pela mesma língua. [risos]

UP: O Miguel visitou o Brasil pela primeira vez, aos 25 anos. Sentiu-se à solta?

MST: Eu ia mesmo com espírito de Álvares Cabral. No avião, quando apareceu a costa do Brasil, tentei imaginar-me no alto da gávea de uma caravela. O meu primeiro impacto com o país foi com o bafo quente, mal se abriu a porta do avião, no Rio. Era Dezembro, Verão no Brasil, e o cheiro a verde entrou por mim adentro, até hoje. Não concordo que o brasileiro seja um português à solta. O brasileiro é um cruzamento de várias coisas, irrepetível, e que só existe ali mesmo. Por isso é que o Brasil é tão fascinante. Agora, o melhor dos portugueses, se calhar, revelou-se no Brasil. Ali, a colonização portuguesa foi muito boa. Os brasileiros depreciam os colonos do princípio do século XX, mas para trás, por exemplo na colonização da Amazónia, o que encontramos é a fidalguia portuguesa, os melhores portugueses – a elite do país. No final, até mandámos para o Brasil a Corte, o Estado…

UP: E a biblioteca real…

MST: Mandámos tudo. O melhor de Portugal foi para o Brasil e, em minha opinião, devia lá ter ficado. O grande erro histórico do D. João VI e do [seu filho] D. Pedro IV [primeiro monarca do Império do Brasil] foi terem regressado a Portugal. A capital do império português devia ter-se mantido no Brasil e hoje seríamos qualquer outra coisa, estranha, numa reescrita da história.

UP: Luís Fernando, tem um palpite do que teria acontecido?

LFV: Seria, sem dúvida, uma história melhor do que foi. Uma história inventada, melhor do que a real.

MST: O Luís Fernando falou da Inglaterra e dos EUA, mas esses dois países combateram, tiveram uma guerra de independência. A independência do Brasil foi pacífica…

LFV: … é sempre uma questão familiar.

MST: De certa forma, é como aqueles casamentos que acabam por um detalhe e as pessoas ficam a vida inteira a pensar: que estupidez, por que é que este detalhe nos separou? E, se o casamento não tivesse acabado?

UP: O Luís Fernando escreveu numa crónica que «quem domina o controlo remoto da televisão, domina o casamento». [risos] As suas crónicas são de costumes, sobre as fissuras num espaço familiar. Hoje, que papel tem a crónica no Brasil?

LFV: Por uma razão inexplicável, a crónica pegou no Brasil, com muito público. Alguns dos nossos melhores escritores só escreveram este género híbrido entre literatura e jornalismo. E foi sempre uma crónica de costumes, ainda que, durante um certo período, bastante política.

UP: Disse uma vez que, no Brasil, a ironia não funciona por escrito porque há uma reverência para com a palavra impressa. Na verdade, você detona tudo isso porque desafia a palavra.

LFV: É, eu tento. A ironia não basta ser escrita, tem que ser lida com ironia. E é curioso isso porque o brasileiro usa muito a ironia no comportamento individual, trivial. E, no entanto, na crónica, a ironia tem que ser explicada: atenção, isto é ironia…

UP: … o que arruina a piada. Em Portugal, Miguel, é o contrário, não é? A piada fácil quotidiana é muito bem sucedida, mas, por exemplo, até na crónica política, substituímos o humor pela ironia.

MST: Nós temos muito jeito para a ironia, nenhum para o humor. Não há nada mais triste do que o Carnaval português, por exemplo.