Terror, lá dentro
O caso é ainda mais flagrante do que o de Philip Roth, outro gigante da literatura contemporânea. Aos 74 anos, John Updike é um dos mais activos e influentes intelectuais norte-americanos, cuja bibliografia inclui 22 romances e dezenas de livros de ensaio, poesia, crítica literária e literatura infantil. E, contudo, entre títulos quase esgotados, de fraquíssima circulação ou recém-editados pela editora Civilização, apenas oito destas obras existem no mercado português. Num golpe de sorte para o leitor, chega às livrarias o mais recente romance, O Terrorista, publicado este ano nos Estados Unidos.
No volume de ensaios More Matter: Essays and Criticism (1999), Updike acusou a maioria dos ficcionistas contemporâneos de não se darem ao trabalho de “aspirar à esperança no paraíso, ao medo do inferno, ou de sequer pensarem noutra vida para além desta de carne e osso e eventual esmagador desapontamento”. Desde os anos 60 que a sua obra comprova um fascínio particular pelas questões espirituais, mesmo quando trata da tragédia da classe média suburbana americana, como na tetralogia de Harry “Coelho” Angstrom, das relações afectivas e conjugais, como em Casais (de 1968), ou dos dilemas intelectuais do seu alter ego, o escritor judeu Henry Bech. Também por isso Updike se tornou famoso com As Bruxas de Eastwick, de 1984.
Em O Terrorista, o escritor ataca os dilemas dos choques religiosos. Com a sua habitual destreza em dominar de uma forma realista e num estilo fluido e certeiro os temas mais diversos e os centrar nas relações humanas, apresenta agora o mundo de Ahmad Muloy, um jovem adulto americano intoxicado em islamismo. Em torno dele, coloca vários outros filhos e netos de imigrantes, e, sobre todos, a sua velha máxima irónica de que “a América é uma ampla conspiração para nos fazer felizes”.
No pós-11 de Setembro, em New Prospect, Nova Jérsia, não foram só as oportunidades do eldorado industrial da imigração aquilo que implodiu. No liceu, o inteligente Ahmad observa “um mundo que troça da religião”. Através dele, Updike fala do esvaziamento do nó interior de cada um como reverso do capitalismo. A América “solidamente pavimentada de gordura e alcatrão” fomenta o terror dentro de si mesma. Sem moralismos, a história de Ahmad, do fundamentalismo ao terrorismo, é um esclarecido e esclarecedor retrato sociológico.
O Terrorista, John Updike, Civilização Editora, 283 págs.
SOL/ 16-12-2008 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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