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John Le Carré | A verdade, agora a cores


John Le Carré escreveu uma autobiografia que não revela segredos íntimos ou de de Estado, mas é uma boa coleção de reminiscências de um ficcionista patológico.

David John Moore Cornwell (n. 1931) tinha 25 anos quando foi formalmente admitido como agente júnior do Serviço Secreto Britânico, no M15. Quatro anos depois, insatisfeito com a falta de ação naqueles serviços, o jovem caçador de espiões pediu transferência para o M16, do outro lado da rua. Do tempo no M15, guardaria sobretudo na memória as correções ortográficas anotadas nas margens dos seus relatórios pelos agentes seniores com estudos clássicos. «Nenhum editor que encontrei desde então foi alguma vez tão exigente ou teve tanta razão.» Poucos anos depois, com 33 anos, o agente reforma-se, graças ao sucesso internacional de um romance, O Espião que Saiu do Frio. Haviam nascido entretanto John Le Carré e George Smiley («o velho espião apressado»).

«A espionagem e a escrita de romances foram feitas uma para a outra. Ambas pedem um olhar atento à transgressão humana e às muitas vias para a traição.» Aos 84 anos e após a publicação de mais de 23 livros — sobretudo histórias de espiões passadas durante a Guerra Fria (1945-1991) —, John Le Carré fez sair finalmente a sua autobiografia, projeto que tentara completar em 1979 e em 2001. A publicação recente (Outubro de 2015) de uma biografia autorizada de mais de 600 páginas pesou na vontade de contar a sua versão dos factos, mas, ainda assim, o resultado final não acrescenta muito ao trabalho do biógrafo Adam Sisman. O Túnel dos Pombos é uma coleção de histórias e fragmentos que o próprio autor apresenta de forma despretensiosa, como registo de «incidentes isolados, autónomos, não apontando em nenhuma direção de que eu tenha consciência, contados pelo que acabaram por significar para mim e porque me alarmam, assustam ou comovem, ou porque me acordam a meio da noite e me fazem rir alto.» Na verdade, o conjunto lê-se de forma tão saborosa como os seus romances, mas sem o suspense habitual.

Talvez a única revelação autobiográfica digna desse nome sejam alguns pormenores da relação do escritor com os pais; a mãe, que o abandonou quando ele tinha cinco anos de idade («até hoje não faço a ideia de que tipo de pessoa era»), e o pai, Ronnie, um vigarista de primeira, «fantasista, preso ocasional», «viciado em teatralidade», que batia nos filhos, mas lhes assegurou uma educação de elite e, no caso de David, legou-lhe a irrequietude crónica e a arte de tecer uma história a partir do nada e «cegar as pessoas com pormenores inventados». Mirabolantes, os esquemas do pai são relatados pelo filho (que os explorou em vários enredos, sobretudo no romance mais autobiográfico, O Espião Perfeito) com ambiguidade moral (uma expressão que lhe é cara enquanto ficcionista) ou, pelo menos, sem uma censura veemente. Afinal, Ronnie foi a primeira grande personagem de David Cornwell akaJohn Le Carré, a fonte de todas as perguntas e efabulações, a raiz da habilidade em mentir e imaginar: «nascido para a mentira, criado para ela, treinado para ela por um sector que mente para ganhar a vida, treinado nela como romancista».

Do ambiente na Alemanha do pós-guerra (onde assistiu, repugnado, ao branqueamento de velhos nazis) e da Guerra Fria até uma entrevista com Bernard Pivot (à conta de uma gravata emprestada) e aos encontros com vários realizadores e atores famosos (Fritz Lang, Stanley Kubric, Francis Ford Coppola ou Martin Ritt; Alec Guiness, Richard Burton, entre outros) sucedem-se múltiplas histórias reais, contadas de memória, grande parte delas vividas enquanto o romancista pesquisava para os seus livros e personagens (para quem conhece bem a obra, é curioso conhecer a fonte de várias delas).


«A meio da vida, eu estava a ficar gordo e preguiçoso e a viver à custa de um fundo de experiência passada que estava a esgotar-se. Chegara o momento de abordar mundos não familiares», confidencia. Assim, muitas vezes à boleia de repórteres de guerra e correspondentes (que lhe emprestaram também a coragem), o escritor correrá mundo à procura de histórias, da rendição de Phnom Penh (onde pela primeira vez lhe apontaram uma arma) à eleição pluripartidária no Congo Oriental, em 2006. A parte mais interessante de O Túnel dos Pombos reúne relatos destas aventuras e de extraordinárias personagens reais mais ou menos conhecidas: da ativista humanitária Yvette Pierpaoli a Yasser Arafat (que cheira a pó de talco Johnson’s e com quem ele dança o dabkenuma passagem de ano) à ativista alemã radicalizada Brigitte, ao dissidente Andrei Sakharov, ao chefe mafioso russo Dima, Rupert Murdoch, ao ex-chefe do KGB Vadim Bakatin, ao agente russo Issa Kostoev, ao poeta exilado Joseph Brodsky, ao presidente italiano Francesco Cossiga, a Margaret Tatcher, ao espião Nicholas Elliott (que discorre sobre Kim Philby) ou a Thomas, senhor da guerra congolês. Do contacto com todos eles e das notas em caderninhos que foram depois escrupulosamente aproveitadas para a escrita, sempre à mão, dos romances, Le Carré diz que contou agora a verdade, se não toda, aquela que melhor serviu à ficção, uma verdade disfarçada, sim, onde necessário, mas nunca conscientemente falseada. Afinal, «a verdade real reside, se reside algures, não nos factos, mas nos matizes». O Túnel dos Pombos dá-nos uma boa conta deles.

O Túnel dos Pombos, John Le Carré, Dom Quixote, 382 págs., 18.90 euros

Jornal Sol, 07-10-2016 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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