John Irving: «O sexo nos meus livros é puro exibicionismo provocatório»
Nos romances de John Irving, as personagens praticam funambulismo entre o sentimento e o cepticismo, a comédia e a tragédia. A Última Noite em Twisted River, o mais recente, mostra como a realidade é, afinal, um acidente.
Na escola secundária de Exeter, no New Hampshire, John Wallace Blunt era um miúdo solitário, assombrado pelo desaparecimento do pai quando tinha apenas dois anos, mas já tão ligado ao padrasto, professor de História da Rússia, que adoptara o seu apelido: Irving. Disléxico, John tinha de esforçar-se mais do que os outros para aprender e para ler, uma das suas paixões. Com 14 anos, começou a praticar wrestling e decidiu que iria ser escritor. Hoje, aos 68 anos e três após ter sobrevivido a um cancro da próstata, com doze romances publicados (entre eles, o popular O Estranho Mundo de Garp, de 1978) e um Óscar pela adaptação ao cinema de um deles (The Cider House Rules), John Irving é, física e tecnicamente, talvez o mais musculado autor norte-americano contemporâneo. Falam-lhe em «talento» e ele responde com «esforço» e «disciplina». Associam-no a «bizarros» enredos inverosímeis e ele responde que eles não chegam nem perto da imprevisibilidade da vida. A Última Noite em Twisted River, o mais recente romance, de 2009, acaba de sair pela Civilização.
É um dos mais ambiciosos romances de John Irving, com mais de seiscentas páginas, um enredo imbricado e um vasto cenário social que cobre três gerações de personagens. Em 1954, Daniel, o filho de doze anos do cozinheiro (Dominic) de um acampamento de lenhadores no New Hampshire confunde a namorada (Jane) do chefe de polícia local (Karl) com um urso e mata-a com um golpe de caçarola na cabeça. Nas cinco décadas seguintes, Daniel e Dominic são obrigados a fugir à perseguição de Karl, apoiados por um amigo, o lenhador veterano Ketchum. Daniel, que se torna um escritor famoso, é mais uma espécie de alter ego de Irving, cuja biografia está indirectamente exposta nos livros (por exemplo, o trauma anterior à revelação, aos 38 anos, de que o pai, piloto na Segunda Guerra, afinal sobreviveu e formou outra família ou a assumpção pública de que, aos 11 anos, foi violado por uma mulher mais velha).
Ex-aluno de Kurt Vonnegut e ex-professor de Escrita Criativa, Irving é um assumido herdeiro moderno da grande tradição narrativa novecentista de Dickens, Tackeray ou Hawthorne. Os seus enredos, meticulosamente imaginados e construídos, são amplos, arejados e com extensos epílogos (começa sempre por escrever a última frase). Agrada-lhe explorar com minúcia a passagem do tempo, o modo como acidentes, perdas, traumas, feridas e amputações várias vão imprimindo um rasto brutal sobre as personagens. Em tempos, disse que «desde o início, todas elas fazem um esforço quixotesco para tentar controlar algo que é incontrolável; algum elemento do mundo, que é sobretudo um caos fora de controlo». John Irving trabalha actualmente num romance que, em 2009, revelou basear-se na peça Ricardo II de Shakespeare.
A idade e o reconhecimento trouxeram-lhe maior prazer no processo de escrita?
Sempre arquitectei as minhas histórias antes de as escrever, desenhando uma estrutura que depois sigo à risca. Com a idade, estou cada vez mais paciente. Já não começo demasiado cedo; saboreio bem a fase da arquitectura. Aprendi, ao fim de doze romances, que tenho de ir muito, muito devagar. Mesmo ansiosíssimo por começar, só avanço quando sei exactamente tudo o que de mais importante vai acontecer no romance: não só a última frase, mas também os dois ou três últimos capítulos.
Isso é controlo. Eu estava a falar de prazer…
Quando se escreve romances como eu, controlo significa prazer. Dantes, fazia os primeiros esboços à mão, o que me obrigava a avançar o mais lentamente possível. Sou demasiado rápido no teclado. Hoje, já só o uso para escrever emails. A verdadeira escrita (como lhe chamo), faço-a toda à mão. Todo o processo me dá imenso prazer. Quando acabo um romance, há sempre dois ou três na fila de espera. Escolho um deles não porque anda há mais tempo na minha cabeça, mas porque me sinto seguro quanto à estrutura e à totalidade da história.
A narrativa de A Última Noite em Twisted River faz um arco. Como é que a arquitectou?
A forma foi fácil. É uma espécie de 8.
Creio que as coincidências e as premonições são os dois pilares do romance. A coincidência como uma forma de analisar o que já passou. A premonição como uma fantasia ou um desejo de controlar o futuro…
A Última Noite em Twisted River, The Cider House Rules [1985] e A Prayer for Owen Meany [1989] assentam numa espécie de predestinação. Os meus outros romances têm uma trajectória mais linear. Mas a sua descrição é exacta para estes três romances. Eles regressam ao ponto de partida; são como uma cobra que se enrola sobre si mesma até morder a cauda. A Última Noite em Twisted River e The Cider House Rules como que acabam onde começam. De qualquer modo, em todos os meus livros há muitos acidentes e coincidências, mas eles são-no apenas para os leitores. Por exemplo, no segundo capítulo, a Jane conta como Ketchum quase cortou a mão esquerda com um cutelo. Acho que, nessa altura, o leitor já suspeita que ele vai mesmo acabar por fazê-lo. A diferença é que eu sei em que dia, em que capítulo e como o fará. E sei-o às vezes anos antes de o pôr no papel.
De onde lhe vem esse domínio da passagem do tempo ficcional?
Dos grandes autores novecentistas, que li na adolescência e que me fizeram querer ser escritor. Comecei a ler romances por causa do enredo, o que já na altura era antiquado e fora de moda. Tenho a certeza de que a minha vida teria sido completamente diferente se eu tivesse lido antes Fitzgerald ou Hemingway, os grandes autores americanos do meu tempo. Aposto que teria dito: «Por favor, dêem-me uma peça e afastem-me dessa porcaria!» Muito provavelmente, teria ficado no teatro. A minha mãe trabalhava no teatro, eu cresci por detrás do palco. Antes de querer ser escritor, quis ser actor.
O teatro influenciou-o na escrita?
Muito. Eu penso nos leitores de uma forma muito mais consciente do que a maioria dos escritores. Penso neles como se fossem uma plateia de teatro: no que sabem, no que antecipam, naquilo de que suspeitam… Penso em como posso apanhá-los, cativá-los. Aprendi isso enquanto fazia os deveres da escola nos bastidores e observava a minha mãe no palco. Acho que transportei para a escrita esse sentido de gestão da cena. Sei sempre aquilo em que o leitor está a pensar e sei como fazê-lo antecipar o que vai acontecer, sem que antecipe os motivos.
O wrestling implica também controlo, disciplina e fazer acreditar, não é?
Está a pensar com certeza na versão coreografada. No verdadeiro wrestling, como no boxe, não há fingimento, nem coreografia. É tudo muito real e imediato. Durante vinte anos e até aos 47 anos, o wrestling [como lutador e como treinador] deu-me um sentido de disciplina e de persistência que transportei também para a escrita. Mas as influências mais importantes foram, sem dúvida, os autores novecentistas e o teatro.
De que maneira é que os traumas sexuais são importantes na construção das suas personagens? Acha que os grandes novecentistas deviam ter usado mais sexo nos seus romances? Se pudessem…
Não podiam, claro. Era o peso da época. [ri] Eu escrevo propositada e explicitamente sobre sexo apenas e só porque essa é a faceta da cultura americana que mais me irrita. Somos um país de ingénuos, de atados, muito imaturo sexualmente, com reacções francamente exageradas e despropositadas em relação ao sexo. Escrevo sobre sexo porque gostava que a América crescesse. Que outro país se interessaria tanto por um felatio feito ao Bill Clinton na Sala Oval? Que outro país está interessado em saber com quantas pessoas dormiu um golfista [Tiger Woods]? Eu quero lá saber! Na verdade, há duas Américas: uma, restritiva, que quer controlar tudo em relação ao sexo, normalizar, padronizar comportamentos; e outra, liberal, muito implicada em causas políticas como as dos homossexuais ou do aborto. Há muito tempo que milito nestas causas. Nunca desisti. O antagonismo à liberalização do aborto, por exemplo, corresponde a um desejo muito primitivo de punir alguém que teve uma gravidez indesejada. E que raio é que os casais heterosexuais têm a ver se os homossexuais se casam ou não? A América vive obcecada com estas coisas. Não sou religioso e a nossa Constituição é muito clara quando diz que nós não somos um país religioso. E, no entanto, a Igreja impõe confortavelmente as suas regras… A sexualidade nos meus romances é, em parte, um sinal deliberado de protesto. Estou farto da hostilidade americana contra a liberdade sexual. Faço algumas coisas acontecerem nos meus livros quase só para gritar aos frustrados e polícias sexuais que as condenam: «Vão-se lixar! Leiam outra coisa! Saiam já do meu livro!» É puro exibicionismo provocatório.
Nos seus livros, há sempre coisas más a acontecer a pessoas boas. Mas nunca existe uma verdadeira punição. Aqui, temos o polícia Karl que persegue Daniel e o pai dele [o cozinheiro Dominic], mas para se vingar, não para os castigar.
Precisamente, o Karl, a personagem punitiva, é uma espécie de polícia sexual. Não lhe interessa que a Jane tenha sido morta; ele próprio podia tê-la matado. O que lhe interessa é que ela [a companheira dele] dormiu com outro homem. É por isso que ele os persegue. Está tudo ligado, não está? Num país onde qualquer um pode ter uma arma, não se pode esperar que elas não sejam usadas, pois não?
Dominic adverte muitas vezes: «Aguenta-te, Daniel… e não faças com que te matem.» Como sempre, os acidentes são violentos e inevitáveis, mas desta vez os protagonistas [Ketchum, Dominic e Daniel], três homens de diferentes idades e muito diferentes entre si, têm uma espécie de pacto de proteção. Porquê?
Une-os um laço de amor, é como se fossem uma família. Mas eu quis sobretudo impregnar a atmosfera do livro com uma sensação de fronteira, de algo que está prestes a tornar-se uma realidade fantasma. Por isso, a história nasce num acampamento de lenhadores a caminhar para o declínio, numa cidade como as do Velho Oeste, onde existe apenas um homem da lei [Karl] e é ele o mau da fita. Ketchum, um veterano condutor de toros, completamente desligado do mundo contemporâneo e avesso ao progresso, tem uma mentalidade de fronteira: é como um americano dos anos 50 do século XIX. A raiva, a independência, a força dele, representam uma parte da América dos pioneiros que já não existe, mas da qual pessoas como ele sentem muitas saudades. Ele é do tipo que acha que qualquer um consegue disparar uma pistola desde que tenha um dedo para puxar o gatilho. Simpatizo muito com Ketchum como personagem perigosa, mas não me sentiria confortável num país governado por ele. E é evidente que, no final, será ele a cometer o erro que levará Karl até Dominic e nunca se perdoará por isso.
«Só lhe resta ficar obcecado com a escrita de Daniel.» Aliás, o mesmo acontece ao próprio, ao escritor Daniel Baciagalupo.
A vida de Daniel é um pesadelo. Ele perde todas as pessoas que ama e que receava perder. A única felicidade possível vem-lhe da imaginação.
Ao contrário de si, Daniel, que também é muito crítico quanto à política americana, decide viver fora do país, no Canadá. Porquê?
Porque ele não se liga a nada. Eu acho que quanto mais zangados estamos com o nosso país, mais razões temos para ficar e dar o troco. Se se é um artista e se vive num país como os EUA, onde as artes são o primeiro sector em que se corta quando há uma recessão e onde as coisas mais estúpidas são as mais valorizadas (o execrável patriotismo e belicismo de bandeirinha), a última coisa que se deve fazer é partir e ter pena de si mesmo. Temos de ficar, ter uma presença odiosa, ser uma fonte detestável de irritação.
Neste romance, muitas personagens têm uma relação forte com os livros. Acredita que, na realidade, as pessoas precisam assim tanto dos livros?
Passo muito tempo nas universidades e em leituras públicas e surpreende-me sempre que a minha audiência seja tão nova. Fico-lhes muito agradecido, porque me lembro de como, dos 16 aos 26 anos, os livros me inspiraram, encorajaram e mudaram. Os livros que li tiveram um profundo efeito em mim. Eu gosto muito das pessoas que lêem. [longa pausa] Mas, na verdade, eu não penso muito na realidade… Costumo dizer que um bom romance tem de ser muito mais bem sustentado do que a dita realidade. No David Copperfield, há um momento em que Dickens nos diz que, conforme vai crescendo, David vai ficando cada vez mais desiludido com a vida real. Isso acontece porque, em criança, ele leu ou escutou todas aquelas histórias infantis maravilhosas e supôs que a realidade seria tão bem estruturada como elas. Não é. A realidade é…
… uma confusão?
A realidade é um acidente. Dou sempre um exemplo que adoro porque põe os americanos furiosos. Eu sou muito cuidadoso na forma como construo os meus romances com plausibilidade e lógica, como uma casa que não pode ir abaixo. Quando um parvo qualquer me diz que é muito pouco crível que alguém confundisse uma mulher com um urso, eu respondo: «Ok, então vamos pensar em mais coisas inverosímeis…» Imaginem que escrevo um romance sobre um locutor desportivo do MidWest, não muito bom no que faz, de quem ninguém gosta muito, mas que lá vai conseguindo uns trabalhinhos na rádio e na TV. Depois, ele vai para Hollywood à procura de emprego e torna-se actor: um mau actor, descuidado, sempre de série B e que ninguém leva a sério como actor. Fica famoso e, porque ao contrário dos outros actores tem muito tempo livre, torna-se presidente do sindicato dos actores de cinema. Ele é um péssimo presidente, mas isso parece não incomodar ninguém, e depois ele torna-se um péssimo governador do Estado da Califórnia e, logo a seguir, um horrível presidente dos EUA, mas um muito popular horrível presidente dos EUA por dois mandatos. Se eu escrevesse este romance, as pessoas diriam que era inverosímil. De facto, a vida real pode ser tão estúpida que exclui qualquer sustentação. É um erro estúpido que um homem tão incapaz como Ronald Reagan alguma vez tenha chegado a ser o que quer que seja, incluindo um mau actor. Eu tenho de trabalhar bem mais e melhor do que isso para contar uma boa história.
A certa altura, alguém diz a Daniel, citando Rilke: «Se achas que consegues viver sem escrever, então não escrevas.» Escrever ajuda-o a si a viver melhor?
Rilke também escreveu que «todos os anjos são aterradores». Todos os meus romances começam por me assustar. A história tem de me pôr primeiro a pensar: «Espero que isto nunca me aconteça a mim, nem a alguém que eu amo.» Tenho de sentir que aquela é uma situação terrível e com tendência para piorar… [sorri] Sem experimentar eu mesmo esta sensação, como é que posso esperar que o leitor se sinta ansioso, curioso, em suspensão? Quando estava a escrever The Cider House Rules, a minha maior dúvida era qual dos dois protagonistas me dava mais pena. Estão ambos numa péssima situação e eu não conseguia decidir-me. Foi um caso invulgar. Habitualmente, sei logo quem é o tipo que vai penar mais do que todos os outros. Stephen King é um dos meus amigos mais antigos. Temos muito pouca coisa em comum como escritores, mas eu adoro-o porque ele está sempre com medo. Eu também.
LER/ Novembro 2010 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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