A arte de envelhecer
Serão talvez as páginas que envelhecem pior e mais depressa. No entanto, é nelas que melhor se traça um íntimo retrato de cada época histórica. De Boccaccio a Sade, de Henry Miller a Anaïs Nin, o sexo em literatura, aliado a uma postura contestatária do autor, é matéria frágil, que se desgasta com o tempo. A Arte da Alegria, escrito entre 1967 e 1976 pela italiana Goliarda Sapienza, não é um livro erótico. Mas a atracção declarada pelo sexo determina grande parte da força deste relato autobiográfico de cerca de sessenta anos da vida da protagonista, Modesta (nascida em 1 de Janeiro de 1900). Ao mesmo tempo, condena-o a uma linguagem, um tom e uma perspectiva feminista já envelhecidos.
Goliarda Sapienza, actriz (colaborou com Visconti), autora de cinco romances autobiográficos, nasceu em 1924, na Catânia, numa família socialista anarquista. A Arte da Alegria, considerado a sua obra-prima, foi recusado durante vinte anos pelas editoras italianas, até Angelo Maria Pellegrino o lançar, em 1996, alguns meses após a morte da escritora. O sucesso póstumo deste provocatório romance «de aprendizagem» deve-se com certeza ao seu carácter libertário. Este é manifesto também na estrutura arrítmica e desordenada (cruzando elipses, perspectivas, longos diálogos dramáticos e rápidas cenas de acção) com que se reproduzem os sobressaltos da vida de uma mulher, ao longo de três gerações e do essencial da história da Sicília, e da Itália, na primeira metade do século XX.
Modesta (como a Claudine, de Colette) é uma sensualista revolucionária, laica e visceralmente livre. Desflorada pelo (suposto) pai, responsável pela morte da mãe e da irmã deficiente, educada num convento, bissexual, cresce da pobreza para uma vida de abastança e poder, como princesa herdeira, matriarca dos domínios, das gentes e da saga dos Brandiforti, activista anti-fascista e feminista. Possui audácia, insubmissão e «uma clareza que mete medo», com que enfrenta os mais diversos episódios e personagens e que motiva a narração da sua vida. Também de uma forma directa, A Arte da Alegria resultou de um corajoso acto de afirmação feminina nos anos 60 e 70. Num «desejo de contar tudo», Sapienza descreve um caminho emocional, intelectual e político sui generis para a época, ainda que o misture com ecos românticos de saga familiar ao estilo de Lampedusa. O resultado é uma narrativa estilisticamente datada, mas rica enquanto testemunho romanesco e sociológico.
Goliarda Sapienza, A Arte da Alegria. Tradução de Simonetta Neto. Dom Quixote, 527 págs.
LER/Janeiro 2010 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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