O umbigo do poema
Em 1971, Ferreira Gullar (pseudónimo de José Ribamar Ferreira, n. 1930, São Luís do Maranhão), jornalista, poeta, crítico de arte, defensor dos direitos democráticos após o golpe de 64, é processado e perseguido como membro do Comité Cultural do Partido Comunista Brasileiro. Após um período na clandestinidade, sairá do Brasil, como Elis Regina cantou numa canção da época: «Meu Brasil… / que sonha / com a volta do irmão do Henfil / com tanta gente que partiu / num rabo de foguete». Iniciavam-se os seis anos de exílio que o levariam a Moscovo, Santiago do Chile, Lima e, por fim, a Buenos Aires. Sobre este período exaltado e traumático, aquele que é considerado o maior poeta brasileiro vivo, Prémio Camões 2010, escreveu um relato autobiográfico, em 1998. Rabo de Foguete: Os Anos do Exílio sai pela Verbo, dois meses após a Ulisseia propor Em Parte Alguma, a recentíssima colectânea de poemas de Gullar, lançada em simultâneo no Brasil e iniciada em 2000.
Para conhecer a poesia de Gullar, é obrigatório ler Poema Sujo, editado em Julho último pela Ulisseia. Foi escrito aos 45 anos (1975), em Buenos Aires, no momento mais desesperado do exílio (um filho esquizofrénico desaparecido, outro toxicodependente, o desemprego, o suicídio de amigos, os rumores de que os exilados brasileiros estavam a ser levados para o Brasil com a ajuda da polícia da Argentina, à beira do golpe político). No final do longo poema onde quis «vomitar a vida», lê-se: «cada coisa está em outra / de sua própria maneira / e de maneira distinta / de como está em si mesma». Assim também, o que vive o poeta exilado está no umbigo de Rabo de Foguete, a digestão das memórias, das quais conta «apenas o essencial».
A linguagem é coloquial, as cenas rápidas e os capítulos curtos, para quatro partes (a clandestinidade; a estadia na URSS, como aluno do Instituto Marxista-Leninista, e a paixão pela russa Elôina; as estadias no Chile e no Peru; em Buenos Aires e regresso ao Brasil) e aumento gradual da tensão, culminando em 72 horas de tortura e na liberdade. O que aqui se lê como um romance nasce da franqueza do narrador. Mais do que engajado politicamente, ele é um homem em fuga, a vida virada «de cabeça para baixo» por um destino histórico muito particular.
Rabo de Foguete: Os Anos de Exílio, Ferreira Gullar, Verbo, 286 págs.
SOL/ 03-12-2010 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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