Julian Barnes ganhou finalmente o Man Booker Prize, com O Sentido do Fim, recém-editado pela Quetzal, vinte e cinco anos depois da primeira nomeação, com O Papagaio de Flaubert (de 1984), esse, sim, o seu melhor livro. Qualquer um dos seus outros dois romances nomeados, England, England, de 1998, ou Arthur & George, de 2005, merecia mais a distinção. Os prémios literários têm temperamentos e não vale mesmo a pena discuti-los. Em contrapartida, há muito que o escritor inglês mereceria um prémio de outra ordem, caso ele existisse: Barnes é o mais fiel amigo do leitor, o autor menos egoísta da sua geração.
A qualidade vai rareando entre os grandes autores anglo-saxónicos sexagenários e septuagenários, quase todos contaminados por uma espécie de esquizofrenia solipsista acentuada pelo pavor da aproximação do fim (Don DeLillo e Margaret Atwood fogem à regra). Há anos que Barnes também escreve sobre o envelhecimento e sobre a morte, mas põe de lado as circunstâncias pessoais e a ansiedade daquilo-que-ainda-tenho-absolutamente-que-deixar-dito-e-só-eu-posso-dizer. Defende: “O problema quando se misturam emoções é que corremos o risco de personificar demasiado a morte. Não devemos transformá-la numa metáfora, num tipo com uma foice. […] A morte é só um processo. É apenas o fruto do trabalho de uma terrível, impiedosa e plácida burocracia, preenchendo aplicadamente a sua quota, como sempre faz”, The Oxonian Review of Books, 2008. Nas onze histórias de Mesa Limão, de 2004, com gentileza e elegância, o escritor cedeu o foco às personagens. Existe mesmo uma “mulher idosa, a caminho dos oitenta e um”, residente num lar, que o toma por derradeiro interlocutor e flirta com ele por carta. Depois da manifesta paixão de Barnes por Flaubert, brandida contra os ditames da crítica convencional, Miss Wistanley é mais uma prova de que “talvez o amor por um escritor seja a mais pura, a mais estável forma de amor” (O Papagaio de Flaubert). Quando a paixão é correspondida, o prémio é bastante alto.
Questionado sobre a sua eventual autobiografia, Barnes resumiu-a assim: “Vejamos: nascido em Leicester, estudou línguas modernas no liceu e na universidade, tornou-se lexicógrafo (logo, não tem medo das palavras), depois foi candidato a jurista (logo, não tem medo de advogados), depois tornou-se jornalista e romancista. É adepto do Leicester City (logo, não tem medo de perder)”, View From Here Magazine, 2008. Descontando alguma pose de falsa modéstia, é inegável que não estamos perante um umbiguista. Mais, Barnes assegura que a escrita é “um trabalho de autodidata, um caminho de tentativa e erro”. E que valor pode ter isso para a literatura que produz? Bastante, porque traduz uma atitude ética e teórica refrescante no panorama atual e ainda nos dá a ver coisas verdadeiramente originais e literárias.
Barnes, muito culto, divertidíssimo na ficção paródica, é um escritor sério e com bastante aversão à crítica atual. No capítulo “Os Olhos de Emma” deíulo.﷽﷽﷽﷽﷽ de Flaubert, atual. cçBastante, porque corresponde asta. es resumiu-a assim: «Vejamos: nascido em Leicester, estudou O Papagaio de Flaubert, Geoffrey Braithwaite/Julian Barnes insurge-se contra uma crítica inglesa que acusa Flaubert de não ser realista, como Zola, por não ter construído personagens a partir da observação objetiva e, concretamente, por ter feito variar a cor dos olhos de Emma ao longo do romance. Os críticos estão amaldiçoados com a memória, por isso transformam os livros em família e assumem um tom paternalista para com os autores (troque-se críticos por escritores e autores por leitores e comprova-se o que ficou escrito em cima). Explica: “Entretanto, o leitor comum mas interessado pode esquecer: pode partir para outra, ser infiel com outros escritores, voltar a extasiar-se de novo. Na sua relação, a conjugalidade não precisa nunca de se introduzir; pode ser uma relação esporádica, mas, enquanto existe, é sempre intensa. Não há vestígios do rancor diário que se cria quando as pessoas vivem juntas bovinamente. Nunca me acontece recordar a Flaubert, com uma voz fatigada, que pendure o tapete da banheira ou que use o piaçaba. O que parece é que a Doutora Starkie não é capaz de deixar de o fazer. Olhem, apetece-me gritar: Os escritores não são perfeitos; do mesmo modo que os maridos e as mulheres não são perfeitos. A única regra infalível é que, quanto mais parecem, menos são. Eu nunca pensei que a minha mulher era perfeita. Amava-a, mas nunca me iludi. Lembro-me… Mas vou deixar isso para outra altura.”
O Sentido do Fim é um romance generoso para com o leitor e as personagens e, nisso, o temperamento de Barnes permanece sólido e anacrónico (ao contrário do seu ex-amigo Martin Amis, cuja rebeldia se foi revelando pura expressão de rivalidade, obsessão também tão contemporânea). O que se poderia perder com o resguardo emocional e autobiográfico do autor, ganha-se em distensão e segurança da prosa. Barnes continua a querer sobretudo determinar “a cada momento, em que posição [o autor] e o leitor se encontram em relação um ao outro”. Quer fazer-nos seguir ao seu lado, também apoiados pelo cavalheirismo redentor (semelhante ao de Arthur e George) da confissão do protagonista e narrador, Tony Webster. Ainda à Oxonion Review of Books, disse: “Gosto de imaginar o escritor e o leitor sentados juntos, não face a face, mas lado a lado, olhando na mesma direção, através de uma espécie de janela de café. E então, neste meu cenário, o escritor pergunta ao leitor: ‘Como é que achas que ela é? Ele parece um bocado esquisito, não? Por que é que estão os dois a discutir?’ O olhar do leitor é paralelo ao do escritor – o escritor está só um bocadinho à frente porque vislumbrou as coisas primeiro.” Neste caso, o seu sentido do fim é bem mais visionário do que a versão corrente: “A nossa vida não é a nossa vida, é só a história que contamos sobre a nossa vida. Que contamos aos outros mas – principalmente - a nós próprios.”
No final da adolescência, num liceu no centro de Londres onde “o darwinismo social pretensioso da classe média britânica estava sempre implícito”, Tony e os seus dois amigos inseparáveis, Colin e Alex, conhecem Adrian Finn, um rapaz alto, tímido e excecionalmente inteligente. Adrian integra o grupo e é admirado por todos (eles acham que ele é o único com “uma vida digna de romance”), mas permanece à margem do “caos hedonista” que os faz ter fome de livros e fome do sexo que não têm e, sobretudo, enaltecer o mérito e a anarquia. “Incitava-nos a acreditar na aplicação do pensamento à vida, na ideia de que os princípios deveriam guiar os atos.” Era um rapaz provocador, mas compenetrado e meditativo. Já em Cambridge, e pouco depois de, por carta, comunicar a Tony o seu envolvimento com a ex-namorada deste, Veronica, Adrian suicida-se. Para os amigos, a sua morte surge “mais paradigmática do que ‘trágica’”, uma espécie de afastamento rápido, “cravado no tempo e na história”.
Passam quatro décadas e abre-se a segunda parte do romance. Tony tem cerca de 60 anos, uma reforma simpática de um emprego inócuo como administrativo, uma filha, dois netos e uma ex-mulher com quem ainda se dá, Margaret (a mulher transparente em oposição à mulher misteriosa que fora Veronica). Antes de nos relatar que acaba de receber uma carta a informá-lo de que a falecida mãe de Veronica lhe deixou por herança quinhentas libras e o diário de Adrian, Tony recorda uma frase muito citada pelo velho amigo de escola: “A história é essa certeza que se produz no ponto em que as imperfeições da memória se cruzam com as insuficiências da documentação.” É nela que reside a chave d’O Sentido do Fim.
Julian Barnes sempre afirmou que os seus livros “contam uma história que conta a verdade”. Agora, interessa-lhe o tempo pessoal, “que é o tempo verdadeiro”, “medido na nossa relação com a memória”. Até perceber de facto esta acepção, Tony busca infrutiferamente o tempo perdido e busca corrigi-lo. O jogo de Barnes, meticulosamente planeado, é o de fazer prova literária da convicção juvenil de Tony de que “o romance trata do carácter revelado ao longo do tempo”. Em O Sentido do Fim, a revelação é estrategicamente confessional, retrospetiva e inconclusiva. O diário de Adrian poderia ser a confirmação, o testemunho, “desfazer as banais reiterações da memória”, mas dele, nós e Tony, só viremos a conhecer fragmentos. Resta-nos acompanhar a revisão do passado no presente levada a cabo por Tony. Acompanhá-lo no choque agitado entre a essência humanamente insegura e imprecisa e os paradoxos do tempo; afinal, a verdadeira matéria literária. “O carácter revela-se com o tempo? Nos romances, é claro. Mas na vida? Às vezes fico a pensar.” Seguimos de braço dado.
LER/ Janeiro 2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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