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Foto do escritorFilipa Melo

Alfarrabistas – em 1993, era assim


O PÓ DOS LI­VROS

«Vi, nos anos 60, na Bei­ra Al­ta, uma ca­sa de ba­nho on­de os li­vros ser­viam de pa­pel hi­gié­ni­co», diz Ta­va­res de Car­va­lho, li­vrei­ro­–an­ti­quá­rio. Em Por­tu­gal, o ca­ri­nho pe­lo li­vro qua­se não tem tra­di­ção. Ape­sar dis­so, há 200 anos que se pro­cu­ram e co­mer­cia­li­zam obras an­ti­gas. Bi­blio­fi­lia e al­far­ra­bis­mo man­têm o seu es­pa­ço. Se­cre­to e má­gi­co.

Os li­vros pa­re­cem não an­siar pe­la nos­sa con­sul­ta co­mo se aris­to­cra­ti­ca­men­te se bas­tas­sem a si pró­prios. Nun­ca se es­go­tam. O pra­zer de ler co­nhe­ce nos bi­blió­fi­los um apu­ra­men­to es­pe­cial. «Ten­to fi­xar o bom e o be­lo. Ava­lio um li­vro pe­la for­ma co­mo foi im­pres­so e en­ca­der­na­do, pe­la qua­li­da­de da ti­po­gra­fia e das gra­vu­ras…», ex­pli­ca Sér­gio Mo­re­no, 22 anos, bi­blió­fi­lo.

Pa­ra eles, não se tra­ta de re­vi­si­tar uma es­cri­ta fa­mi­liar ou uti­li­zar um ins­tru­men­to de con­sul­ta mas de pro­cu­rar ra­ri­da­des. Não se sa­tis­fa­zem com as ac­tuais edi­ções de au­to­res de ou­tras épo­cas. Que­rem ter e ler as pri­mei­ras.

 An­seiam pe­las ano­ta­ções do au­tor na mar­gem do tex­to, por um ra­bis­co seu. Que­rem ter um exem­plar que per­ten­ceu a al­guém ilus­tre, a de­di­ca­tó­ria de um poe­ta… Co­me­çam por es­co­lher um es­cri­tor, te­ma, épo­ca ou im­pres­sor. Lêem tu­do o que foi es­cri­to so­bre o as­sun­to, in­ves­ti­gam, quei­mam pes­ta­nas. Ajoe­lha­dos ou em­po­lei­ra­dos, com ho­ras per­di­das nas li­vra­rias al­far­ra­bis­tas, ca­çam ob­jec­tos pre­cio­sos.

RE­SOL­VER PAI­XÕES

Mon­sieur de la Bé­doyè­re pos­suia uma mag­ní­fi­ca bi­blio­te­ca, re­sul­ta­do de uma vi­da in­tei­ra. Em 1847, por ra­zão des­co­nhe­ci­da,  pro­pôs­–se ven­dê­–la. O lei­lão foi mar­ca­do e o dia che­gou. Anun­cia­do o pri­mei­ro vo­lu­me, não re­sis­tiu a ver o seu «fi­lho» pas­sar pa­ra mãos des­co­nhe­ci­das. De­ba­teu­–se com to­dos os in­te­res­sa­dos e read­qui­riu tu­do. Tor­nou­–se sím­bo­lo da bi­blio­ma­nia.

 «O amor aos li­vros é um ví­cio que só ter­mi­na com a mor­te». Lou­ren­ço Lan­cas­tre de Sou­sa, 28 anos, per­ten­ce à no­va ge­ra­ção de bi­blió­fi­los por­tu­gue­ses. Tra­ba­lha na So­cie­da­de Co­mer­cial dos Lei­loei­ros, co­mo asses­sor de Isa­bel Maior­ca. Aque­les que, co­mo ele, são co­no­ta­dos com os ra­tos de bi­blio­te­ca, con­tam com os li­vrei­ros pa­ra o «reen­con­tro» es­pe­ra­do.

Os al­far­ra­bis­tas en­ve­re­da­ram pe­la pro­fis­são por­que re­ce­be­ram o tes­te­mu­nho ou, sim­ples­men­te, acha­ram que era um bom ga­nha­–pão. «Foi o aca­so que me guiou», afir­ma João Pi­res, sep­tua­ge­ná­rio, há qua­se 50 anos do­no de O Mun­do do Li­vro. «Her­dei es­ta pai­xão», con­tra­põe Ta­va­res de Car­va­lho.

Em 1948, Nu­no Ca­na­vez, 58 anos, che­gou à Li­vra­ria Aca­dé­mi­ca, no Por­to, «des­co­nhe­cen­do a ac­ti­vi­da­de». O seu mes­tre, Gue­des da Sil­va, en­si­nou­–lhe se­gre­dos e res­pon­sa­bi­li­da­des. «Nun­ca pe­gues num exem­plar in­di­fe­ren­te­men­te. Fa­mi­lia­ri­za­–te com ele». Ho­je, tem «mi­lha­res de tí­tu­los e ca­pas» ar­qui­va­dos na me­mó­ria e con­ta com o Pre­si­den­te da Re­pú­bli­ca en­tre os seus clien­tes. «Quan­do me pas­sa pe­la mão um li­vro que nun­ca vi, sei lo­go que é ra­ro», diz or­gu­lho­so.  

Até se es­ta­be­le­ce­rem, os co­mer­cian­tes de li­vros an­ti­gos en­vol­vem­–se nu­ma es­pi­ral de exi­gên­cias e es­tu­do. «Le­mos mui­tos ca­tá­lo­gos e bi­blio­gra­fias», jus­ti­fi­ca João Lo­pes Hol­tre­man, da Li­vra­ria Ca­mões. De­pois, co­nhe­cem o to­que e o chei­ro das pre­cio­si­da­des. Dis­pen­sam uten­sí­lios. Bas­ta­–lhes a ex­pe­riên­cia de con­tac­to com o pas­sa­do. Não se es­pe­cia­li­zam, co­mo é há­bi­to no es­tran­gei­ro, por­que não há pro­cu­ra su­fi­cien­te. Não fa­lam dos lu­cros ou fun­dos de ma­neio. Ro­deiam­–se de um mis­té­rio se­me­lhan­te ao dos li­vros an­tes de se­rem aber­tos e li­dos. Pa­ra lá das es­tan­tes vi­sí­veis, exis­tem ar­ma­zéns re­chea­dos de tí­tu­los. «Vi­ve­mos num mun­do es­con­di­do do co­mum dos mor­tais», con­fi­den­cia Ta­va­res de Car­va­lho.

PA­TOS BRA­VOS

«Não é um ne­gó­cio pa­ra se fa­zer for­tu­na», diz An­tó­nio Sil­va, 70 anos, da Li­vra­ria San­to An­tó­nio, es­pa­ço pe­que­no nu­ma rua afas­ta­da do cen­tro lis­boe­ta des­te co­mér­cio, o Bair­ro Al­to. «Sou um al­far­ra­bis­ta. Ven­do li­vros com um ano ou 200. É uma vai­da­de in­ti­tu­lar­mo­–nos li­vrei­ros­–an­ti­quá­rios». O cer­to é que in­sis­tem na di­fe­ren­ça. «Nas nos­sas re­la­ções, ca­da um pu­xa a bra­sa à sua sar­di­nha», re­su­me Ta­va­res de Car­va­lho.

Pro­fis­sio­nais co­mo An­tó­nio Sil­va ou Tar­cí­sio Trin­da­de, 61 anos, al­far­ra­bis­ta na Rua do Ale­crim, ne­go­ceiam de por­ta aber­ta. Re­ce­bem to­dos os clien­tes.  Têm o no­me na lis­ta te­le­fó­ni­ca. Um li­vrei­ro de lu­xo co­mo Ta­va­res de Car­va­lho tra­ba­lha «por con­tac­to». Além do ar­ma­zém que pos­sui, re­ce­be «os co­nhe­ci­dos e as pes­soas ami­gas» num re­quin­ta­do ter­cei­ro an­dar, la­bi­rin­to de an­ti­gui­da­des — a sua ca­sa. Con­tac­ta mais com o es­tran­gei­ro e de­fen­de es­se «alar­gar de ho­ri­zon­tes».

Em Por­tu­gal, es­te ofí­cio, ti­do no pas­sa­do co­mo tra­ba­lho de usu­rá­rios e char­la­tões, dei­xou de ter afic­cio­na­dos ape­nas en­tre os que se in­te­res­sam pe­la cul­tu­ra. De re­pen­te, os in­ves­ti­do­res aper­ce­be­ram­–se de que es­ta apli­ca­ção de ca­pi­tal lhes po­de pro­por­cio­nar um es­ta­tu­to que se con­quis­ta com di­nhei­ro e sem es­tu­do. «Os clien­tes que me dão mais lu­cro têm gos­to pe­las pri­mei­ras edi­ções e ti­ra­gens es­pe­ciais. Não as lêem e só pen­sam na va­lo­ri­za­ção. São os amon­toa­do­res», ex­pli­ca Nu­no Ca­na­vez.

«Os no­vos­–ri­cos com­pram gran­des bi­blio­te­cas em pou­co tem­po e não as con­se­guem di­ge­rir», diz Her­cu­la­no Fer­rei­ra, 35 anos. As­sim co­mo o ir­mão, aju­da o pai, Ma­nuel Fer­rei­ra, al­far­ra­bis­ta e lei­loei­ro por­tuen­se. En­quan­to es­tes «clien­tes pas­sa­gei­ros» não se aper­ce­bem de que pa­ra in­ves­tir é pre­ci­so sa­ber, vão des­re­gu­lan­do os pre­ços. «Há li­vros in­com­ple­tos que se ven­dem mais ca­ros do que os in­tei­ros», afir­ma João Pi­res, in­dig­na­do. Luís Go­mes, 23 anos, pro­prie­tá­rio da mais jo­vem ca­sa al­far­ra­bis­ta por­tu­gue­sa, a Li­vra­ria Ar­tes e Le­tras, é mor­daz: «Os tec­no­cra­tas ape­nas amam os li­vros de che­ques.» 

Os ver­da­dei­ros clien­tes são os que man­têm as ter­tú­lias. Pas­sam as ma­nhãs de sá­ba­do na Li­vra­ria His­tó­ri­ca e Ul­tra­ma­ri­na.. J. C. Sil­va, co­nhe­ci­do co­mo Al­mar­jão, re­ce­be­–os nu­ma das suas inú­me­ras sa­las. Pro­por­cio­na con­ver­sas com fun­do de jar­dim, per­fu­me e his­tó­rias de li­vros. A apoiá­–lo es­tá a sua fi­lha Mar­ga­ri­da, 37 anos, sua su­ces­so­ra.     

ES­TÁ EM PRA­ÇA

«Te­mas co­mo ar­ma­ria, ge­nea­lo­gia, ca­ça, cu­li­ná­ria, vi­nhos e Des­co­bri­men­tos Por­tu­gue­ses são clás­si­cos», cla­ri­fi­ca Isa­bel Maior­ca. A pri­mei­ra edi­ção d’ Os Lu­sía­das  (Luís de Ca­mões), da Men­sa­gem  (Fer­nan­do Pes­soa) ou da Pe­re­gri­na­ção  (Fer­não Men­des Pin­to) nun­ca des­va­lo­ri­za­rão. São o con­tri­bu­to por­tu­guês pa­ra o pa­tri­mó­nio bi­blio­grá­fi­co uni­ver­sal. Além des­tes va­lo­res se­gu­ros, a com­pra do li­vro an­ti­go so­fre a in­fluên­cia de mo­das. «As pe­ças jor­na­lís­ti­cas, re­cen­sões li­te­rá­rias e te­ses de dou­to­ra­men­tos di­tam a flu­tua­ção da pro­cu­ra», ex­pli­ca Sér­gio Mo­re­no.

«O que es­tá a dar»  é Ca­mi­lo Pes­sa­nha, a Ge­ra­ção de 70, mo­der­nis­tas e li­vros so­bre ar­te e mo­bi­liá­rio. Lon­ge des­tas os­ci­la­ções de tem­pe­ra­men­tos es­tão os li­vros por­tu­gue­ses qui­nhen­tis­tas, os mais co­ta­dos. 

«Um li­vro do Pa­dre An­tó­nio Viei­ra, sé­cu­lo XVII, é ra­ro mas não atin­ge os pre­ços dos de Mi­guel Tor­ga, Jo­sé Ré­gio ou An­tó­nio Ra­mos Ro­sa. Fe­li­cia­no de Cas­ti­lho ou Guer­ra Jun­quei­ro, cé­le­bres há cem anos, caí­ram no es­que­ci­men­to», afir­ma Nu­no Ca­na­vez. Em tem­pos, Mi­guel Tor­ga con­tou­–lhe que quan­do ofe­re­cia as suas pri­mei­ras edi­ções pou­cos as acei­ta­vam. Ho­je, An­sie­da­de, que con­si­de­ra «o me­nor» da sua obra, che­ga a atin­gir os 700 con­tos.

 Os al­far­ra­bis­tas cul­pam tam­bém os lei­lões pe­la in­cons­tân­cia das suas re­cei­tas. Em Por­tu­gal, o cres­ci­men­to des­ta prá­ti­ca, cor­ren­te no es­tran­gei­ro, de­ve­–se ao in­te­res­se pe­las an­ti­gui­da­des no pós-25 de Abril. As­sis­tir a uma ses­são é uma ex­pe­riên­cia de con­tac­to com um mun­do on­de si­glas, sub­en­ten­di­dos e psi­co­lo­gia de gru­po im­pe­ram. Há pes­soas que só com­pram em lei­lão, ine­bria­das pe­la pres­são do «pi­car dos li­vros». Com uma ba­se de li­ci­ta­ção de­fi­ni­da, um bom vo­lu­me po­de atin­gir um va­lor cem ve­zes su­pe­rior ao real. Ca­da li­ci­ta­dor tem um có­di­go pre­ci­so, que o pre­goei­ro co­nhe­ce de an­te­mão — tor­cer o na­riz, le­van­tar o de­do ou o so­bro­lho sig­ni­fi­cam ade­são ao des­pi­que. «Um bom com­pra­dor sa­be quan­do de­ve pa­rar. Um in­ves­ti­dor apres­sa­do exi­be a for­ça do di­nhei­ro e au­men­ta o va­lor da pe­ça», co­men­ta Ta­va­res de Car­va­lho. Luís Go­mes con­tra­ria a opi­nião ge­ral: «Os lei­lões, com uma co­mis­são fi­xa de 25%, não nos re­ti­ram po­der de com­pra. Ven­de­rem­–nos bi­blio­te­cas é mais rá­pi­do e me­nos tra­ba­lho­so.»

PE­CHIN­CHAS

«Hou­ve tem­pos em que as gran­des bi­blio­te­cas, trans­por­ta­das em mu­dan­ças por car­ros de bois, ser­viam de le­nha», diz Isa­bel Maior­ca. Foi es­se o tem­po das pe­chin­chas – lo­tes de li­vros com­pra­dos por tu­ta e meia e re­chea­dos de pre­cio­si­da­des. Al­far­ra­bis­tas es­tran­gei­ros e gran­des uni­ver­si­da­des mun­diais, cons­cien­tes da im­por­tân­cia das edi­ções por­tu­gue­sas, apro­vei­ta­ram os bai­xos pre­ços. O Es­ta­do No­vo ain­da pou­pou al­guns exem­pla­res, em rom­pan­tes de pre­ser­va­ção dos va­lo­res na­cio­nais.

Ho­je em dia, e os al­far­ra­bis­tas são unâ­ni­mes em afir­má­–lo, ain­da exis­tem boas bi­blio­te­cas. Mas a si­tua­ção in­ver­teu­–se. «Que não se pen­se, co­mo é co­mum, que qual­quer li­vro com 200 anos va­le uma for­tu­na», ad­ver­te Tar­cí­sio Trin­da­de. Quem pos­sui as ra­ri­da­des sa­be dis­so e fá­–las va­ler. Aca­ba­ram­–se os to­los, fi­ca­ram os pre­ços gor­dos. Pa­ra sal­var a si­tua­ção, os co­lec­cio­na­do­res, eter­nos in­sa­tis­fei­tos, es­tão per­ma­nen­te­men­te a com­prar e ven­der exem­pla­res. As ac­tuais edi­ções, mal im­pres­sas e co­la­das, não ali­men­ta­rão o mer­ca­do. «Os li­vros de ho­je vão­–se des­fa­zer», ex­pli­ca o se­nhor Pi­res. A so­lu­ção es­tá nas ti­ra­gens es­pe­ciais ou fac­–si­mi­la­das, ra­ras, e na con­tí­nua ex­plo­ra­ção dos clás­si­cos  de há 200, 100 ou 50 anos.

«Sem­pre fo­ram pou­cos os que ama­ram os li­vros», la­men­ta Luís Go­mes. Es­ta de­di­ca­ção vi­ve tam­bém de pes­soas co­mo aque­le se­nhor que Gue­des da Sil­va viu, to­dos os dias, du­ran­te 10 anos, ob­ser­var a mon­tra da sua li­vra­ria, sem nun­ca en­trar.

VISÃO Nº17/ 1993

© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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