A raiva de existir
É um sujeito “80% normal”. Aos 30 anos, programador numa empresa de serviços informáticos, recebe um salário mensal “2,5 vezes maior do que o ordenado mínimo”, o que lhe dá algum poder de compra. Não tem sexo há dois anos, desde que se separou de uma dessas “ignóbeis parvalhonas de egocentrismo delirante” pervertidas pela psicanálise. Conhecêmo-lo enquanto, ao longo de um mês, com o seu anódino colega Tisserand, dá formação a funcionários do Ministério da Agricultura na província francesa. Ele é o primeiro anti-herói de Michel Houellebecq e o centro de Extensão do Domínio da Luta.
Para quem só agora chega ao universo de Houellebecq, a leitura deste seu primeiro romance, de 1994, é o melhor ponto de partida. Numa crítica recente na The New Yorker, intitulada “90% Destestável”, John Updike defende mesmo que esta é a única obra válida do menino de ouro da nova literatura francesa. Depois dos estrondosos sucesso e polémica provocados por As Partículas Elementares (1998), Plataforma (2001) e A Possibilidade de Uma Ilha (2005), legiões de fãs e detractores transformaram-no num fenómeno mediático e comercial que perturba qualquer pura avaliação literária.
Mas, se Houellebecq e os seus romances-bomba sobre a ciência, o amor, o turismo sexual, o islamismo ou a clonagem são hoje também um caso sociológico, isso deve-se à singularidade das suas opções de expressão. “Auto-expressão monopolizadora”, chama-lhe Updike; “pornografia”, aponta George Steiner. O protagonista do quase autobiográfico Extensão do Domínio da Luta, responde: “A escrita não reconforta quase nada. A escrita descreve, delimita. Introduz uma suspeição de coerência, a ideia de realismo. Remexe-se ainda submerso numa bruma violenta, embora existam alguns sinais, o caos está ao virar da esquina. Em boa verdade é um reconforto indolente.”
Houellebecq, nascido na ilha de Reunião há 48 anos, criado pela avó em França, formado em Agronomia, ex-administrativo da Assembleia Nacional francesa, deprimido crónico, hiper-inteligente, desbravou caminho numa crua visão estética sobre o caos da sociedade contemporânea. Anti-utópico, admirador de Comte e de Balzac, insiste em que “apenas a ciência diz a verdade”. A literatura equaciona dúvidas e fracturas. O domínio da luta demarcado nos anos 60 é hoje difuso, mas extensível à mísera e mediana existência de cada ser “80% normal”. Houellebecq é um dos incómodos sinais da revolta.
Extensão do Domínio da Luta, Michel Houellebecq, Quasi, 127 págs.
SOL/23-12-2006 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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