O homem e a fúria
William Faulknert teve um único objectivo na vida: a escrita. Com ela, tornou–se um pioneiro da literatura norte–americana.
Escrever, acima de tudo. Escrever, nem que isso significasse «perder a honra, o orgulho, a segurança, a felicidade, tudo». Escrever, movido por uma espécie de «fúria insane» que enchia páginas por uma transfusão directa do sangue e do coração para as palavras. Foi essa a única missão que William Cuthbert Faulkner escolheu. Cumpriu-a, deixando uma das bibliografias mais notáveis da história da literatura universal e interpretando da forma mais profunda e trágica trezentos anos da sua terra natal, o Sul dos Estados Unidos, dissecada nas suas gentes brancas e negras, glórias e fracassos, mitos e destino, no seu subconsciente. No centenário do nascimento de um dos pais do moderno experimentalismo literário (em 25 de Setembro de 1897, em New Albany, Mississippi), recordaram–se as palavras do tio John Falkner, comentando o fracasso do desempenho do sobrinho como empregado do First National Bank: «Não fazia absolutamente nada: nunca foi mais do que um escritor.»
SOZINHO
Contemporâneo de John dos Passos, Hemingway, Fitzgerald, Erskine Caldwell, Steinbeck ou James Farrell, foi com essa geração perdida que Faulkner resgatou o prestígio da literatura norte–americana. Fê–lo sozinho, no silêncio interior que tanto apreciava, aceitando qualquer emprego que lhe desse o dinheiro necessário para sustentar a escrita (ao longo da vida, teve as mais diversas profissões, dado que, até à atribuição do Prémio Nobel da Literatura, em 1950, os livros nunca lhe renderam dinheiro suficiente para sobreviver). Dizia: «Se um escritor tiver de roubar a sua mãe, não hesitará; a Ode a uma Urna Negra [de John Keats] vale mais do que um punhado de velhas.» A escrita foi a sua única responsabilidade.
Odiava que o questionassem sobre qualquer assunto que não fosse estritamente literário. Se o faziam, mentia, fugia, praguejava. William Faulkner sempre desejou que dele apenas ficassem os livros. De tal modo que, em 1953, quando a revista Life publica um artigo de duas páginas sobre ele, comenta: «A Suécia deu–me o Prémio Nobel. A França deu–me a Legião de Honra. Tudo o que o meu país faz por mim, é invadir a minha vida privada, ignorando os meus protestos.» Dois anos depois, num encontro organizado pela editora francesa Gallimard, é abordado pelos jornalistas. Apavorado, recua um passo de cada vez que lhe fazem uma pergunta. No final, encurralado entre a multidão e a parede, consegue suscitar a piedade dos repórteres, que o deixam finalmente isolar–se. Sempre preferiu o silêncio ao ruído, a solidão às multidões.
Da sua vida privada, tal como desejou, ficou pouco para a História. Sabem a quase nada os clichés da figura que vive sempre crivada de dívidas, fuma incessantemente cachimbo, adora o álcool (que utiliza para conseguir um permanente estado de emotividade e hipersensiblidade), os aviões, caçar, andar a cavalo e navegar no grande Mississippi. Os que o conheceram de perto, revelaram sómente que tinha uma memória prodigiosa e era dono de uma compaixão e sensibilidade únicas.
EM PRIVADO
Apenas conhecemos na terceira pessoa o registo biográfico de um andarilho que saltita de cidade em cidade, nunca abandonando contudo o seu «condado» sulista. Os seus dramas chegam–nos envoltos em fumo. O facto de não se ter conseguido formar na escola secundária de Oxford (para onde a família se mudou e onde o escritor cresceu) e de não ter aguentado senão dois anos na Universidade local não o deve ter incomodado muito. Sofreu de certeza com o primeiro casamento daquela que viria a ser depois a sua mulher, Estelle, a adolescente a quem dedicou os seus primeiros poemas. Enraiveceu–se por não ter sido aceite como piloto na americana Army Air Force (por ser demasiado pequeno) e adoptou uma pose very british, chegando a incluir um «u» no seu nome de família, para conseguir entrar na Royal Air Force. Desesperou quando a Primeira Guerra acabou «cedo demais» para que pudesse atingir a glória como aviador. Enterrou a sua primeira filha, Alabama, nascida prematura e falecida nove dias depois. Chorou e culpou–se pela morte do irmão mais novo, William Dean, vitimado num acidente enquanto pilotava o avião do escritor (comprado com a venda dos direitos do romance Santuário a Hollywood). Mas nenhuma destas tragédias revela o seu mundo interior de uma forma tão completa quanto aquelas que recheiam os seus livros.
Descendente de uma poderosa família sulista, arruinada pela Guerra Civil, Faulkner nasce num tempo e numa sociedade fundadores de alguns dos mais importantes mitos psicanalíticos da sociedade norte–americana. Estão–lhe no sangue a teimosia, os códigos de honra, a fé, o heroísmo e as culpas do Sul esclavagista, agrário e aristocrático que lutou até mais não poder contra a sujeição às políticas republicanas e abolicionistas do presidente Lincoln. Tal como sugere Jorge de Sena, no seu célebre prefácio para Palmeiras Bravas (escrito em 1960), vive «num mundo ‘amaldiçoado’ [o adjectivo é de Faulkner] pela escravatura mas contraditoriamente imbuído de virtudes heróicas.» Para ser grande como os seus antepassados, resta–lhe escrever e descobrir que, através da escrita, pode criar todas as personagens do passado e do futuro, colocando-as no presente da sua terra.
FANTASMAS
Então, melancólico, amargurado por pertencer a uma geração privada de destino, escreve. Com John, o pai fundador da linhagem dos Sartoris (a família base do seu primeiro romance sobre o Sul), iniciou um relicário de memórias — a sua salvação —, convocando fantasmas e levando-os a expor os seus dramas interiores mais profundos. Através das complexas sagas dos Sartoris, dos Sutpens, de Absalão, Absalão, dos Compsons, de O Som e a Fúria, dos Snopes, da trilogia iniciada com The Hamlet, ou dos Brundren, de As I Lay Dying, cria famílias de personagens que invadem os livros, saltando de uns para os outros com as suas perdições. Nos romances de Faulkner, os mortos não querem morrer. E decidem como Wilbourne, no final de Palmeiras Bravas: «Entre a dor e o nada, eu escolho a dor.» Faulkner condenou–as a ser assim, dando–lhes apenas uma escapatória: «A consciência moral do homem é a maldição que ele tem de aceitar dos deuses para que eles lhe dêem o direito de sonhar.»
Numa das poucas entrevistas a sério que concedeu, à Paris Review, em 1956, o escritor explicou: «Com Sartoris, descobri que valia a pena escrever sobre a minha própria terra natal, que nunca viveria o suficiente para esgotá–la e que, sublimando o real no apócrifo, teria toda a liberdade para empregar ao máximo o talento que tivesse. Isso abriu–me uma mina de ouro de outras pessoas e então criei um cosmos próprio. Posso mover essas pessoas para a frente e para trás, como Deus, não só no espaço, mas também no tempo.» O imaginado condado de Yoknapatawpha, onde situa a acção da maioria dos seus romances, permite–lhe completar este jogo. Dá–lhe um nome impronunciável (o mesmo que os índios davam ao rio Yocona, a sul de Oxford) e declara–se «único dono e proprietário» destes 2400 quilómetros quadrados de fervilhante e complexa ficção.
DIFÍCIL
Ainda adolescente, afirmou descaradamente: «Eu podia escrever uma obra como Hamlet quando quisesse.» Tenaz, disciplinado no exercício da escrita em qualquer circunstância da sua vida, insistiu sempre na impossível busca da perfeição levada a cabo pelo artista e na absoluta necessidade de constantemente «tentar de novo». Nada mais importava senão a capacidade de «exercitar uma paciência infinita e observar os homens sem nunca os julgar e sem intolerância, de modo a captar o verdadeiro motivo das suas acções».
Complexo, difícil, povoado por uma galeria infinda de vozes e personagens, o seu estilo é, segundo Jorge de Sena, uma «selva dardejante de pormenores significativos, fumegante de violência e humor negro, toda em recorrências paralelísticas e cumulativas, borbulhante de riqueza semântica e sintáctica». No final, a recompensa de quem nele se aventura é a de ter vivido «por algum tempo, aturdido e aflito, naquele mesmo limbo, quase inacessível, de que brota a vida e em que radicam as grandes obras literárias». Cem anos após o seu nascimento, 35 após a sua morte, ainda ecoa o desejo de William Faulkner: «Gosto de pensar no mundo que criei como sendo uma espécie de pedra angular do universo; e que, por pequena que ela seja, se fosse removida, o próprio universo entraria em colapso.»
Minas de sal
Para Faulkner, Hollywood representou apenas duas coisas: dinheiro e tédio
Em 1942, os direitos de autor pelos seus livros rendem–lhe ao todo uns magros trezentos dólares. No mesmo ano, Faulkner assina um contrato de sete anos como argumentista da Warner Bros. Ordenado semanal: trezentos dólares. Não admira que tenha sido ele o escritor americano que mais trabalhou para essa gigantesca fábrica de fitas e de mitos, à qual gostava de chamar as suas «minas de sal».
Ao todo, participou em mais de 50 argumentos (sendo impossível discriminar–se a sua intervenção na maioria deles), escritos durante os três contratos que assinou com a MGM (1932-33), a 20th Century Fox (1936-37) e a Warner (1942-44). Entretanto, exasperou os directores dos estúdios — a um deles disse despreocupadamente que ia trabalhar «para casa», fazendo-o pensar que se referia a Beverly Hills e encaminhando–se antes para Rowan Oak, a sua fazenda a cerca de duas mil milhas de distância. Sorveu todas as gotas de álcool disponíveis, mesmo as contidas em loções capilares emborcadas nas casas de banho. Conheceu o seu grande amigo Howard Hawks (com quem colaborou nas obras-primas The Big Sleep e To Have and Have Not, adaptações de romances de Conrad e Hemigway). E deixou uma imagem mítica, retratada pelos irmãos Coen, no filme Barton Fink (1991).
Nunca Hollywwod lhe suscitou mais do que esse mesmo desprezo que o fez afirmar, no primeiro dia de trabalho, que apenas lhe interessava escrever as deixas para os noticiários e para Mickey Mouse. Prova disso é a resposta que deu a Clark Gable quando, um dia, este lhe perguntou se era escritor: «Sou sim, Sr. Gable. E você, o que é que faz?»
Faulkner de A a Z
ÁLCOOL — Valeu-lhe alguns internamentos em clínicas de desintoxicação como a de Byhalia (no Mississippi), onde virá a morrer, vítima de trombose, após uma queda de cavalo (colete de aço)
BIOGRAFIA — A do seu amigo Joseph Blotner, publicada em 1974
BISAVÔ — William Clark Falkner (1825-1889), escocês, foi um dos primeiros povoadores europeus da região de Oxford, combateu com louvor na Guerra Civil, foi agricultor, advogado, político, autor de sucesso (com o romance The White Rose of Memphis, reeditado 36 vezes em trinta anos) e pioneiro dos caminhos de ferro, fundando a companhia da família. Faulkner sonhou um dia vir a ser como ele
DINHEIRO — Disse: «O escritor não precisa de liberdade económica. Tudo o que precisa é lápis e papel. (…) Os bons escritores não têm tempo para pensar no sucesso ou em ganhar dinheiro.»
FRASES — A mais longa que escreveu, no conto The Bear, tem 1600 palavras e ocupa seis páginas, duas delas preenchidas por um parêntesis
FAMÍLIA — Foi progressivamente perdendo glórias. O avô do escritor, John W.T. Falkner, fundou o First National Bank of Oxford, que ainda hoje continua em funcionamento. O pai trabalhou como mero funcionário da companhia de caminho de ferro que fôra da família, antes de ser comerciante e depois procurador na Universidade de Oxford
MESTRES — Entre outros, Phil Stone e Sherwood Anderson, que o impulsionaram a escrever, Dickens, Proust, Conrad, Cervantes, Flaubert, Balzac, Dostoievski, Tolstoi, Shakespeare, Melville, Keats, Shlelley e, claro, James Joyce
MULHERES — As mais importantes na sua vida são a mulher, Estelle, a filha, Jill, e as amantes, Joan Williams e Jean Stein
NEGROS — Sempre adoptou uma dúbia posição pública. Em 1956, declarou num entrevista que se bateria pelo Sul «mesmo que isso significasse descer à rua e disparar contra negros.» No entanto, reservou-lhes um espaço de eleição nos seus livros, especialmente em Desce, Moisés (dedicado à sua velha ama negra, Caroline Barr, modelo para a personagem Molly) e Intruder in the Dust
OBRAS — Soldier’s Pay (publicado em 1926), Mosquitoes (1927), Sartoris (1929) e O Som e a Fúria (1929), As I Lay Dying (escrito em 47 dias, reza a lenda que enquanto Faulkner trabalhava numa mina, publicado em 1930), Santuário (1931), Luz em Agosto (1932), Absalão, Absalão (1936), The Unvanquished (1938), Palmeiras Bravas (1939), The Hamlet (1940), Desce, Moisés (1942), Intruder in the dust (1948), Requiem for a Nun (1951), The Reivers (1962)
RECONHECIMENTO — Na América, chega apenas em 1946, com Portable Faulkner, primeira antologia da sua obra. Três anos depois, o escritor recebe o Nobel da Literatura e, em 1951, é galardoado com o National Book Award. No final da vida, é convidado como escritor residente na Universidade de Virgínia
SUL — Região devastada por uma Guerra Civil que durou quatro anos, opôs onze estados algodoeiros à União nortista e matou um milhão de homens. Personagem principal dos seus livros, assombrada por inúmeros fantasmas
YOKNAPATAWPHA — O seu condado imaginário onde situou a acção da maioria dos seus romances
NOBEL — Naquele que foi considerado o melhor discurso de sempre, referiu a importância «das velhas verdades universais — o amor e a honra e a piedade e o orgulho e a compaixão e o sacrifício.» O sujeito da Arte é «o coração em conflito consigo mesmo», disse, aos 53 anos.
VISÃO Nº 232/1996
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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