O idiota ri porque não sabe nada do mundo ou, antes, porque, afinal, conhece coisas que os outros desconhecem? Cervantes explorou este paradoxo na personagem magistral Dom Quixote (1605), Dostoiévski retomou-o na obra-prima O Idiota, primeiro publicada em 1869. Apenas sete anos depois, do russo Saltykov-Shchedrin (pseudónimo de Mikhail Yevgrafovitch Saltykov, 1826-1889), surgiu A Família Golovliov, agora publicado pela Relógio D’Água, com notas e excelente tradução a partir do russo assinadas por Manuel de Seabra.
Em A Família Golovliov, o idiota transmuta-se em hipócrita, mas mantém-se como mediador de um retrato crítico da realidade. No prefácio do romance, o crítico James Wood afirma: «O hipócrita pode servir, entre outras coisas, como embaixador deformado da verdade». Longe deste modelo do hipócrita tradicional, Porfírio (irmão de Stépan Vladímiritch, o primogénito de quem trata a história) é um hipócrita num mundo onde não existe nem verdade, nem moral. O que significa que a sua actuação é atípica. Tão atípica que o coloca entre a gargalhada mais pavorosa e o retrato do nada, a comédia satírica e a tragédia. «Fundiu-se com o seu mundo horrendo, e não tem público», explica Wood.
O principal objectivo de Saltykov-Shchedrin, que conheceu uma extraordinária aclamação em vida, era satirizar as condições sociais da Rússia do seu tempo («a servidão ainda existia, embora o seu fim já estivesse à vista»). Interessava-lhe a moralidade das fábulas de Esopo, mas, acima de tudo, pela crueza da exposição da sua mensagem, mascarada pelo encantamento animal. Talvez por isso também as suas personagens se foram progressivamente desumanizando, até ao ponto de responderem apenas pela preservação exclusiva de si mesmas. A despótica, avara e insensível mamã Arina Petrovna Golovliova é um exemplo claro, secundada pelo «marido-palhaço», o frívolo bêbado Vladímir, pelos três filhos homens e pelas netas gémeas, Anninka e Liubinka. Na família Golovliov todos se mimam com as alcunhas, os adjectivos e os desdenhos mais cruéis: Arina é a velha bruxa; Stépan é o bobo patife; Pável, o rato apático, e Porfírio, o sonso sanguessuga. No arranque do romance, reunir-se-ão todos para, em conselho de família, decidirem a sorte de Stépan, espécie de filho pródigo que regressa a casa arruinado.
Embora Stépan seja indicado pelo autor como protagonista, é Porfírio quem alimentará as páginas mais talentosas, sombrias e eficazes do romance. Com uma ambição desmedida e totalmente despojado de consciência ou culpa, Porfírio incorpora na perfeição o epíteto que a família lhe coloca (Pequeno Judas) e a característica maior que Saltykov-Shchedrin lhe atribui: «uma insensata esterilidade moral». Mais do que o enredo, é o enfoque nas personagens o centro deste «massacre satírico» (Wood). A tenacidade bestial com que Porfírio se apossa, pouco a pouco, de toda a riqueza da família, levando-a à ruína, não se aproxima em ferocidade da forma como chega a conduzir os próprios filhos ao suícidio e à vergonha. Sem redenção, nele se concentra a violência com que o autor quis caricaturar os defeitos e a decadência de todos os pequenos proprietários de província. Stépan, na sua incontrolável verborreia, no seu «langor doentio» e no seu ódio impotente, reforça a descrição do teatro do horror de Golovliovo. Um lugar sem moral e sem amor, onde os hipócritas e os idiotas servem um escarninho retrato do ser humano reduzido a nada.
A Família Golovliov, Saltykov-Shchedrin. Tradução de Manuel de Seabra. Relógio D’Água, 282 págs.
LER/ Dezembro de 2010 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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