De manhã muito cedo, um homem, uma mulher e a filha de cinco anos estão sentados na cafetaria de uma estação rodoviária. Aguardam a partida da camioneta que os levará de volta à cidade do interior de onde o casal viera há anos para a cidade grande. O homem foge das consequências públicas de um escândalo de corrupção e acredita que, longe, no espaço natal, ainda podem reconstruir a fantasia de uma família feliz. A mulher não quer deixar para trás os sonhos de ascensão na cidade nova e é assombrada pelas ameaças do amante. A miúda quer apenas levar um gato consigo. Nas poucas horas desta espera, decide-se o futuro dos três. Outra Vida, segundo romance do brasileiro Rodrigo Lacerda, finalista dos prémios Jabuti e Portugal Telecom, surpreende pela economia de espaço e de tempo narrativos se comparada com a amplitude do retrato das personagens. Com poucas pinceladas, mas certeiras, uma mão segura e traço muito fluente, Lacerda deixa-nos espreitar por dentro a relação de um casal em crise profunda. A arte maior do romancista é dar espaço à existência autónoma de cada personagem, tratando com subtileza e cuidado as razões e as raízes dos sentimentos e opções de cada um.
Rodrigo Lacerda (n. 1969), escritor e editor paulista, levou oito anos a apurar este romance. Desse apuramento terá surgido o despojamento final, concentrado no osso de cada movimento interno das personagens, almofadado pela memória de situações passadas. Outra Vida lê-se bem e muito rapidamente e não é só um retrato ‘photomaton’ de um banal rompimento de projeto comum entre duas pessoas. Na verdade, tal como defende a mulher, apenas uma coisa parece contrariar hoje em dia essa banalidade: «A única prova de honradez que ainda se pode exigir [um do outro], por enquanto, é o amor aos filhos. O resto virou pó.» No centro, está a criança e os laços de cada um com ela. Mas a corrosão afetiva do casal é mais grave do que a corrupção real. A mulher é praticamente incapaz de sentimento maternal; o homem está ingenuamente preso a um ideal romântico. De modo imparcial, através de um narrador que é uma «terceira pessoa próxima» (técnica do «discurso indireto livre»), Lacerda dá espaço e dignidade a cada um dos dois pontos de vista. A humanidade do resultado tem traços de poesia.
Outra Vida, Rodrigo Lacerda, Quetzal, 168 págs.
SOL/ 13-01-2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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