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Foto do escritorFilipa Melo

Rebecca West | Alemanha, país zero


Enquanto assistia aos julgamentos de Nuremberga, Rebecca West procurava sinais de uma paz e de uma justiça que o fim da guerra ainda não fizera chegar. A História ao vivo nunca é como a que ficará escrita nos livros.

O ano de 1945, a hora zero (Stunde nul) como lhe chamaram os alemães, havia sido celebrado em todos os jornais como o do fim da guerra, mas, na verdade, seria em Nuremberga, no ano seguinte, que as forças ocupantes procurariam julgar e enterrar os demónios, à vista de todos e de vez. Cerca de 325 correspondentes de órgãos de informação de 23 países diferentes acotovelaram-se desde o primeiro minuto para acompanhar as sessões hora a hora, dia a dia, até que, dado o carácter percursor daquele tribunal internacional e as decorrentes disciplina de ferro, complexidade e morosidade dos trabalhos em curso, todos haviam sido abatidos pelo tédio. Rebecca West (1892-1983), famosa repórter e ficcionista inglesa, havia sido enviada a Nuremberga pela revista norte-americana The New Yorker e, no décimo mês do julgamento, era já peremptória: «A sala de audiências era a cidadela do aborrecimento. Todos os que se encontravam na sua esfera de ação eram presa do mais extremo tédio. […] O símbolo de Nuremberga era o bocejo. […] Para todos os que ali estavam, sem exceção, aquele era um lugar de sacrifício, de aborrecimento, de dores de cabeça, de saudades de casa.» O desmantelamento da máquina da guerra acompanhava aos poucos os esforços da máquina da paz e da justiça, mas no epicentro da transição, revelavam-se particularidades que a História apagaria e que só um olhar presente, mais atento e mais crítico, conseguiria registar; um olhar suficientemente estático mas desperto para verificar a verdadeira velocidade e intensidade das mudanças. Foi o caso do olhar de Rebecca West, plasmado em três textos escritos entre 1946 e 1954 sobre o mais famoso julgamento de todos os tempos e agora publicados pela Relógio d’Água, com o título Estufa com Ciclâmenes. A par, por exemplo, de registos de Alfred Döblin ou W. G. Sebald, trata-se de um retrato raríssimo da Alemanha no imediato pós-guerra.


Rebecca West, como quase todos os outros correspondentes estrangeiros, estava alojada num palacete nos arredores de Nuremberga, ex-propriedade de uma família de industriais bávaros «com um belo historial de distinção académica e de serviço público» depois manchado pela ligação às elites nazis. Numa estufa escondida nos jardins desse «conto de fadas alemão», um jardineiro perneta (Rebecca acentua que o governo nazi não se esforçou por enterrar os seus mortos nas cidades bombardeadas ou por providenciar próteses aos seus soldados mutilados na frente de combate), e apenas ajudado por uma rapariguinha, cultivava ciclâmenes que, apesar da rígida proibição vigente, comercializava com grande sucesso. Tal como neste exemplo, a repórter inglesa acentua características típicas dos civis alemães: o espírito industrioso, a confiança no poder do trabalho, um estoico sentido do dever, a paixão pela produtividade. Encontra-as patentes na margem de um riacho, onde um citadino pratica exercício apaixonadamente («ainda tinha o seu corpo, ainda tinha aquele músculo estomacal decerto notável, ainda mantinha o seu eu único») ou em Berlim, onde os escombros dos prédios incendiados ou recém-demovidos são removidos por mulheres de idade: «os cabelos grisalhos caindo hirtos como cordões de botas emoldurando os seus rostos curtidos, os corpos uma mescla de ossos e coisas amarrotadas como um guarda-chuva mal enrolado, as mãos quase tão ossudas como as suas ferramentas de trabalho.» Interpreta-as em Nuremberga, em 1946, ou na Berlim dividida dos anos 50, onde, diz-se, muitos berlinenses compreenderão por fim o que é o totalitarismo.


Na sala do tribunal, em Nuremberga, ao tédio juntava-se a excentricidade de algumas regras e normas de segurança (incapazes, ainda assim, de impedir o suicídio de Göring na véspera da execução), «a doença da uniformidade que atacara os acusados durante o julgamento» e os havia vencido, a evidência da excessiva delicadeza e postura de nostra culpa dos conquistadores (uma armadilha que «pode bem ser considerad[a] a coisa mais importante que aconteceu em Nuremberga») e das diferenças de comportamento entre as forças ocupantes (evidenciando-se, por exemplo, a sovinice dos ingleses, a generosidade dos americanos, a alienação dos franceses e a ferocidade gélida dos russos). Atenta a cada detalhe, exímia na recriação de ambientes e posturas, acutilante, West é peremptória: «O problema de Nuremberga era ser tão manifestamente parte da vida tal como esta é vivida. O tribunal era parte integrante das estranhas coisas que aconteceram na sua periferia; e estas já eram suficientemente estranhas.»

O maior feito de Nuremberga é termos todos ficado a saber, «sem a menor dúvida», o que fizeram aqueles dezoito homens que ali foram julgados: «Nenhuma pessoa letrada pode agora alegar que aqueles indivíduos fossem outra coisa que não abcessos de crueldade.» E, no entanto, o legado de Nuremberga é muito mais complexo do que isto («Na verdade, a sala de audiências era um tanque atulhado de equívocos até à borda») e a repórter deixa-o bem claro quando se refere, por exemplo, à satisfação com que muitos recebem a notícia do suicídio de Göring ou à iniquidade do sistema de execução da pena de morte («nunca houve acontecimento legal que fedesse tanto a ilegalidade» e Nuremberga não foi exceção). Profundamente político, o legado do testemunho de Rebecca West é, por sua vez, único e denso, uma janela aberta no muro da perspectiva convencional e uniformizada sobre a época em questão. A dado ponto, salientando a capacidade da Alemanha para reerguer a sua indústria no pós-guerra, ela escreve: «Os alemães prestaram-nos um serviço ao livrarem-nos da culpa do nosso pecado contra os refugiados.» E, mais uma vez, a sua clarividência dá que pensar, apontando para que «o argumento político mais decisivo do nosso tempo não será lido em livros, será vivido».

Estufa com Ciclâmenes, Rebecca West, Relógio d’Água, 162 págs., 15 euros

Jornal «i» 03-10-2016 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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