Nélida Piñon tem 60 anos [em 1997] e foi a primeira mulher a subir à presidência da Academia de Letras Brasileira, em 1996. Vestida, pela primeira vez, de vermelho e assumindo uma herança deixada por Machado de Assis. Formada em Jornalismo, estreou–se em 1965, com o romance Guia–Mapa de Gabriel Arcanjo. A República do Sonhos, escrito em 1984, narra a saga daqueles que procuram o ouro dos sonhos e da memória, inaugurado nas narrações do avô Xan e resgatado por Madruga, o protagonista, quando se decide a contar as suas lendas.
O rosto de Nélida Piñon é, ele próprio, uma encruzilhada de caminhos e memórias. É neta de galegos, carioca de nascimento, lutadora por convição, uma mulher que faz transfusões de sangue e de cultura com as gentes e a vida. Em A República dos Sonhos, procura as suas raízes e cruza os continentes americano e europeu através de personagens em busca de sonhos. Aqui, fala na primeira pessoa da memória
A certa altura, Esperança, filha do galego Xã, diz: «Tudo o que quero é uma terra onde se dê espaço às invenções e ao imaginário.» É essa a república dos sonhos procurada neste livro?
NÉLIDA PIÑON — Ela representa alguém que tinha esperança numa terra onde as suas ideias pudessem vingar. Nasceu no início dos anos 20 e morreu cedo. As suas ideias estavam fora de época mas ela tinha sonhos suficientes para buscar uma utopia, para imaginar que era possível tecer com os fios invisíveis do destino uma vida melhor para si e para a sua espécie rara, daqueles que não se acomodam. A ideia central é a de que a América, terra promissora, está em nós. Nós é que lutamos por ordenar as traves mestras como se estivéssemos lançando as pedras das grandes fundações teológicas.
De um novo sonho…
Da capacidade de entender que cada sonho traz incutido em si mesmo um conceito de fracasso.
O que já foi suficientemente testado na Europa…
Não lanço um arpão contra a Europa. Apenas mostro que a América é um produto das fabulações possíveis. Nela estão implicadas todas as culturas, todos os desesperos e desilusões mas também todas as aventuras. O que nos leva a pensar que não nos auto–inauguramos, somos um produto de múltiplas inaugurações.
Este livro é também um ajuste de contas com todas as fusões que existem na sua biografia.
Sou uma mulher de múltiplas culturas. Sei que sou muito antiga na Europa e nova na América. Costumo dizer que tenho um olhar tão recente sobre o Brasil que a minha família é mais jovem do que as palmeiras imperiais do Jardim Botânico, plantadas por D. João quando lá chegou, em 1808. Portanto, olho o Brasil reverberando o tempo todo. Isso é–me muito grato. Porque essa composição de antiguidade pode levar–me até à Grécia com absoluta naturalidade.
Sendo apátrida ou pertencendo a todo o lado?
Eu pertenço profundamente ao Brasil mas tenho outras pertencências. Este é um livro de busca de raízes que conheço mas que não aceito como certezas. Procuro o epicentro, uma origem mais profunda, não localizada ou regionalizada: uma origem da minha alma. Sempre senti que fui uma aedo, ajudando Homero a fazer os seus textos, ou uma amauta da América, no sentido dos Incas, não deixando que a memória pereça. Tenho uma noção histórica muito aguda e uma noção clara de que as culturas nascem coladas umas às outras. A minha biografia é absolutamente insuficiente. Só sou eu quando sou vizinha de todo o mundo. Neste sentido, sou uma peregrina.
Usando a palavra como meio de ligação entre mundos, tal como faz neste livro?
As palavras têm uma origem, foram forjadas pelo desespero, preenchendo parte da solidão do homem. Eu uso–as, sobretudo, com as suas sugestões e alusões. Quando uma se cola à outra, podemos agregar–lhes a luminosidade do filtro poético. É esse o jogo e a aprendizagem do escritor. São precisos pelo menos 20 anos para começar a escrever, perceber como as palavras se movem, como são meandrosas. É uma coisa absolutamente mágica. A palavra está ao serviço da minha busca de luz e do que que quero conceituar. Mas, na ficção, não se conceitua de forma peremptória: disfarçam–se ideias através de feitos narrativos. E as palavras são arqueológicas, integrando, como Tróia, várias cidades dentro delas. À medida que o leitor vai entendendo o jogo verbal do escritor, vai percebendo que dizem mil coisas, falam de mil raças.
Em A República dos Sonhos, usou–as priorizando uma ideia?
Quis dizer tantas coisas… Daí a riqueza do texto, feito para proliferar, como a multiplicação dos pães. As palavras ajustam–se a um edifício. A minha primeira preocupação foi montar tantas personagens, em tantas épocas diferentes. Apresento 100 anos de história do Brasil mas, através de certos recursos narrativos de algumas personagens, consegui apreender mais 100 e atingir alguns instantes constitutivos da nação brasileira.
Cruzados com a Galiza e a invenção da América…
Trabalhei com muito do século XIX galego, mas as evocações de Xan levam–nos até ao séc. XII, o das peregrinações, a época de ouro. Aliás, Xan é a minha homenagem aos contadores de histórias, aos que narram em segredo…
Aqueles que organizam a memória mítica e constroem os pilares de várias gerações?
Claro. Para mais, na sua modéstia, Xan explica a natureza do texto. Por exemplo, quando está a contar uma história e as pessoas se distraem, reage e acrescenta ingredientes que as captem de novo. E se alguém lhe cobra o final de um enredo longo, diz: «Quem não tem paciência não merece ouvir histórias.»
Máxima aplicável a este livro com as suas 734 páginas e uma estrutura extremamente complexa, comparável à de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez…
Este é um livro enorme, a descobrir. O Carlos Fuentes disse que faz o corte das Américas. Acho que foi por isso que, em 1996, me deram o Prémio de carreira Juan Rulfo [o maior e mais importante da literatura latino–americana, pela primeira vez atribuído a um autor de língua portuguesa e a uma mulher]. Xan imagina que o neto, Madruga, será o seu sucessor, nunca que irá para a América. E diz–lhe, da Galiza: «Houve um momento, em que toda a Europa sonhou connosco, em que fomos objecto do sonho alheio. Traz–nos de volta as lendas que os castelhanos nos roubaram.» Ele sabia que as lendas também se roubam.
Os mitos e a memória funcionam como formas de resgate?
O mito certifica–nos, legitima essa grandeza da memória. Sou cada vez mais uma leitora do passado. Posso ser mais complacente quando entendo de onde viemos. Sem a memória, não passamos de balões à deriva. Em dada altura, Madruga sente que tem em si próprio muitos gestos roubados. Nós todos praticamos gestos que são incorporados não se sabe de onde. Eu, por exemplo, descobri que dou especial atenção a quem tem olhos azuis porque essa era a cor dos olhos do meu avô Daniel, que perdi aos 14 anos. Busco-o desse modo. Todos nós constantemente nos procuramos. Seria uma desfaçatez imaginarmo–nos inaugurais… Procuramos afinal uma inauguração colectiva e pretérita. E é por isso mesmo que só os grandes povos praticam grandes cortejos fúnebres, fazendo a catarse dos seus mortos.
Procurando uma espécie de Atlântida perdida, como se faz neste livro?
Tenho muita desconfiança das glórias passadas a limpo e assinadas. A memória e a biografia organiza–se pelo contacto com os outros. Como se o continente tivesse ido para o fundo do mar e nos cabesse a nós trazê–lo para a superfície e descobrir o mundo. Um livro ou uma frase são a busca das sete cidades, que ali ficam embutidas e que nós vamos desenterrando. É nesse movimento geológico que se descobre a cidade de um texto.
VISÃO/ Abril 1997 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
Comments