Da morte, com humor
Durante oito dias, o escritor José Cardoso Pires (1925-1998) esteve sem memória a lutar com a morte. Em De Profundis, Valsa Lenta conta como um homem pode rir à gargalhada quando diz adeus à vida. Em 1997, o livro apresentava-se assim:
O início do pesadelo começou com uma pergunta de cartilha: «Como te chamas?» A manhã desse 12 Janeiro de 1995 estava cinzenta, e pálido como ela José respondeu: «Parece que é Cardoso Pires.» Dois anos depois, o escritor ainda pensa neste «é» que marcou uma perda de identidade que durou oito dias. Acidente vascular cerebral diagnosticaram então os médicos perante um homem a quem um coágulo de sangue alojado no cérebro roubara a memória e a capacidade de comunicar. «Morte cerebral», difundiu a imprensa. Juntando–se a todos aqueles que até hoje relataram experiências de proximidade com a morte, talvez compelido por aquilo a que os técnicos chamam «síndroma de Lázaro», José Cardoso Pires (autor de A Balada da Praia dos Cães, O Delfim ou Alexandra Alpha) escreveu De Profundis, Valsa Lenta, uma crónica de como a morte se lhe anunciou.
Os detalhes da história estão todos neste volume de 69 páginas. Rejeitando as explicações médicas e baseando–se apenas no relato de quem o acompanhou e na sua parca «memória duma desmemória», Cardoso Pires descreve uma «morte branca». E ri–se, ri–se muito a cada página, mostrando os dentes como serras. A ironia da coisa, só a percebeu depois de ter despejado as palavras todas no papel e ao escolher o subtítulo. Valsa Lenta, saboreada a cada passo, com o braço a fazer figas por trás da cintura da morte. Explica: «A ironia do relato não foi propositada. Só depois percebi que há um humor na morte quando vista à distância.»
MORTO DE RISO
Há uns meses, ao encontrá–lo com o espírito em forma, alguém lhe disse: «Está com um óptimo aspecto.» A resposta saiu–lhe mordaz e sem ponto de exclamação. «Pois, não estou morto.» Inconscientemente, o sarcasmo tomara conta do seu caso. Como acontecera já com outros, lembra hoje, sentado no seu escritório da casa de Lisboa.
Fala no caso de um condenado à morte nos EUA que antes de ser levado para o local da execução pára a leitura de um livro e dobra o canto da página onde ficou. Ou do escritor Russel Baker que conta como um dia a sua avó lhe telefona e diz: «É só para saber se vais ao meu funeral hoje à tarde.» Maravilhas de humor negro, chama–lhes Cardoso Pires. Comparáveis às conversas dos dois homens com quem partilhou o quarto no Hospital de Santa Maria, «dois passarões arruinados, a agredirem–se e sem consciência de que se refugiam no humor para fugir ao medo que têm da morte». Ou a como se chamava «feio» a si próprio, farto de procurar outro nome na memória. Ou à imensa prosápia com que pensava responder certo aos inquéritos básicos dos médicos. «Onze menos nove quantos são?» «Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é nada.»
Só quem voltou para contar é que pode rir–se assim, garante o escritor. «Tudo o que diz respeito à morte ou à sua aproximação é vivido sem humor, porque, por natureza, ela inspira pânico e não nos deixa ver esse lado. Quando nos safamos dela, fixamos. Satanás deve–se fartar de gozar, e com razão, com os sinais de humor da morte. O que eu vi naquele hospital, o que eu senti… tudo aquilo tem um humor terrível.»
EU ESTIVE LÁ
Passou pela morte, José? «Penso que foi um registo do que poderá ser. Um apagamento que só não foi como a morte porque não era absoluto. Às vezes, vinham clarões, lampejos de memória… Como o momento em que olho para a palavra «BANHO», vejo o «B» e o «N» invertidos, passa–me uma legenda na cabeça e pergunto–me se não estou a caminhar para a loucura.» Cardoso Pires sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) transitório porque não implicou uma lesão cerebral significativa. Os ACV, alterações da estrutura das artérias causadas por factores de risco como o envelhecimento ou a hipertensão, é indicado pela Organização Mundial de Saúde como a principal causa de morte nos países desenvolvidos. Em Portugal, surge à frente do enfarte do miocárdio. Mais de 140 mil norte–americanos morrem anualmente por este motivo e representam apenas três por cento do total de indivíduos afectados. Outro terço sai desta experiência com incapacidades permanentes, entre elas a incomunicabilidade total. Sorte ou maestria da Ciência, o escritor pode hoje dizer que conseguiu fugir «a uma morte amável».
Dissolvida a memória, embotada a sensibilidade e sofrendo de uma afasia fluente grave, «não era capaz de gerar as palavras e construir as frases que transmitissem as imagens e os pensamentos que algures no seu cérebro iam irrompendo». Assim o descreve o neurocirurgião João Lobo Antunes na sua Carta a um Amigo–Novo, prefácio para De Profundis. E mesmo neste estado, Cardoso Pires inventava um neologismo para nomear todos os objectos: «simoso».
Decidiu depois criar um epíteto para aquilo por que passara. Chamou–lhe «morte branca e nula». Porque era assim que olhava o mundo. «Via as pessoas mas não as reconhecia — só reconhecia a minha mulher e, por vezes, esquecia–me do nome dela. Tudo tinha uma claridade espantosa e as pessoas perdiam o vulto. Não encontrei Nossa Senhora, nem Satanás, nem ninguém. Tudo era branco e nulo.», conta.
ACIDENTE, TRANSITÓRIO
O relato de calma coincide com as reflexões sobre a near–death experience apresentadas por Sherwin B. Nuland, professor de Cirurgia e História da Medicina na Universidade de Yale, no seu livro How We Die. Segundo ele, a paz sentida por quem esteve muito perto da morte corresponde a um «mecanismo defensivo de despersonalização», resultado de uma evolução biológica de milhões de anos que tem como função preservar a vida das espécies. Cardoso Pires refere o quase completo desprendimento com que olhava tudo à sua volta. Como um ancião que inconscientemente se desliga dos afectos porque sabe que vai morrer em breve. «Desligava–me das coisas porque sabia que só era capaz de as fixar durante alguns segundos. Aceitava o mundo com um fatalismo transigente.», descreve. Citado no livro de Nuland, o psicólogo Keneth Ring entrevistou 49 pessoas que haviam sido declaradas como clinicamente mortas, por doenças ou lesões repentinas. A grande maioria indica como elementos básicos da sua experiência «paz, sensação de bem estar, separação do corpo, entrada na obscuridade, percepção da luz e entrada na luz».
Hoje, sentado no seu escritório da casa de Lisboa, José Cardoso Pires relembra como, ao sair do Hospital de Santa Maria numa manhã de Inverno, se sentiu profundamente reconhecido e generoso. «O mundo era uma coisa espantosa, as cores tinham mudado… Não sei se era Primavera ou se fui eu que a fiz. Apenas noutro momento da vida — com a minha mulher, antes de casarmos — me senti tão agradecido por estar vivo.» De volta a casa e num gesto muito pouco habitual, correu para a sala onde começara o pesadelo. «Lembro–me que fiz o mesmo que os gatos: uma espécie de fixação do terreno. Dei a volta à casa, sentei–me neste escritório que nunca uso e, a comer o pargo cozido que pedira para jantar, estive uma data de tempo sem pensar em nada, como se estivesse bêbado, imensamente grato a um mundo que me parecia absolutamente maravilhoso.» O encantamento durou um mês, durante o qual mudou muito, «para melhor». Depois, «tudo voltou ao normal».
FÉ NA CIÊNCIA
Profundamente céptico, o escritor pasmou perante a sua total recuperação, operada tão subitamente quanto a queda no vazio. «O fascinante disto tudo é que não houve recuperação nenhuma. Tudo se passou como se fosse um desmaio súbito, um sono misterioso. Como um tipo que põe o sujeito e o predicado numa frase, pára a meio e depois regressa para lhe colocar o complemento. Foi uma espécie de milagre para o qual não contribuí nada», explica. Assim, só tinha duas soluções: «Ou ia a Fátima de joelhos ou agradecia aos médicos.» Católico praticante até aos 15 anos — «a minha mãe era uma católica fervorosa e, por isso, fui criado numa igreja um pouco de campanário: aliás, de onde sairam muitos agentes da Pide…» —, ateu desde então, Cardoso Pires escolheu a segunda via. E ficou–lhe um profundo deslumbramento pela Ciência e por médicos que, como João Lobo Antunes, «são grandes na sua profissão, estão ligados à humanidade e ao coração e, ao mesmo tempo, têm um humor criativo.»
Nunca fez balanços de vida — «também não me convinha fazê–los…» — e julga a morte como fazia antes: «Não há imortalidade. Morremos e morre tudo.» No entanto, não deixa de lhe confessar o medo, seguro apenas pela confiança na Ciência. Ficaram–lhe perguntas soltas — como «um homem sem memória pode sonhar?» —, um profundo interesse pela eutanásia — que defende acerrimamente —, e a plena convicção de que «a morte é um dos maiores negócios do mundo». Para a sua, pede dignidade, «sem dores nem humilhações». Entretanto, aos 71 anos, exercita os seus maiores prazeres: «Descobrir que todos os dias os perdemos mas que estamos já a descobrir outros.»
* Voltar à palavra *
Tão inesperadamente como a perdeu, José Cardoso Pires recuperou a linguagem. Alexandre Castro Caldas, professor catedrático de Neurologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, dirige o Centro de Estudos Egas Moniz e acompanhou o seu caso.
«Desde o início do século XIX que a ciência se tem preocupado com as bases biológicas que sustentam a capacidade de utilizar a linguagem. Os modelos gerados são progressivamente mais complexos e aceita–se hoje que existem regiões do cérebro particularmente envolvidas nessa actividade. Isso significa que quando se fazem estudos em indivíduos normais com as novas técnicas de activação cerebral algumas regiões do hemisfério cerebral esquerdo e raras do direito evidenciam–se durante a execução de tarefas verbais. Da mesma forma, é já conhecido que uma lesão cerebral que destrua essas regiões provoca também alterações de linguagem.
Isto não quer dizer que a função linguagem se encontra nestes lugares nem que se considera unidimensional. A aquisição da linguagem oral e posteriormente a aprendizagem da linguagem escrita introduz no sistema nervoso em desenvolvimento, estratégias organizativas específicas. Quanto às diferentes dimensões da linguagem é possível decompor o processo em operações múltiplas para as quais se identifica a participação de operadores cerebrais próprios.
Quando uma lesão destrói este arranjo de neurónios a função perturba–se podendo estar comprometidas as capacidades de produzir discurso, de compreender, de repetir, de escrever e outras, de forma isolada em diferentes combinações, sendo ainda possível fazer uma análise de componentes de cada uma destas funções. Conforme a natureza, a localização e a dimensão da lesão que afectou o cérebro a disfunção será maior ou menor e mais ou menos duradoura.
Nos casos mais graves, porque a lesão é extensa e foram destruídas regiões fundamentais para o processo da informação verbal, os doentes ficam privados de comunicação através da linguagem para o resto da vida. Nestes casos adquirem formas alternativas de comunicação que a família e amigos muitas vezes aprendem a descodificar e rentabilizar até à máxima eficácia.
Felizmente nem sempre assim é, e regista–se uma recuperação das funções perdidas, sempre que possível com o apoio de terapeutas da fala. Esta recuperação assenta em variáveis, algumas conhecidas outras não, que têm a ver com o rearranjo funcional das redes neuronais.»
VISÃO/ Maio de 1997 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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