John Banville é famoso pela escrita ultra-trabalhada, sensual na opulência formal e na atenção maníaca ao mundo exterior. Em entrevista, revela-se jocoso e provocador, solipsista (investiga quase cientificamente a fronteira entre razão e imaginação), mas sobretudo honesto na intenção vigorosa de levar ao limite as potencialidades da escrita de ficção.
Os romances do irlandês John Banville (n. 1945) estão cheios de monstros. Monstros protagonistas e narradores, que são totalmente humanos, quase ridículos na sua monstruosidade. Faltam-lhes muitas vezes sentimentos, mas nunca uma envolvência colorida, uma mente hipersensitiva e uma sinceridade perturbadora. Procedem habitualmente a uma investigação da trajetória da sua vida, confessam-se e desnudam-se sem contemplações. Foram egoístas e brutais com os outros humanos, mas agora, perante o leitor, estão, na sua narração, apenas a tentar chegar à verdade, e por isso merecem toda a nossa atenção. Esta mistura de coisas indignas narradas com brilho literário e capacidade de autoanálise feroz consegue pinceladas de cómico e desabusado no que poderia ser trágico, ou meramente pomposo. É o que se dá também com a narração de Olly (Oliver Orme), protagonista do romance mais recente, A Guitarra Azul, pintor falhado, um pequeno cleptomaníaco, fascinado com o brilho e a nova vida que dá (diz ele, para se justificar) a objetos insignificantes.
A primeira tentação é dizer-se que John Banville faz uma escrita poética, pictórica, trabalhada para ser avaliada em primeiro lugar como estilo, qualidade de escrita. Em 2005, no discurso de recepção do Man Booker por O Mar, ele chegou a dizer que finalmente tinham dado o prémio a uma obra de arte… Mas os seus livros não são estáticos, muito menos contemplativos. Apesar do brilho ofuscante das metáforas, das aliterações e do estilo principesco, Banville ergue de imediato a voz credível de um protagonista com um mundo específico de referências e obsessões e, sobretudo, sabe construir muitas e pequenas cenas, momentos atmosféricos e incidentes que têm um efeito cumulativo. Dá tempo e espaço ao leitor para respirar e, sobretudo, para ver. É um escritor das interrogações e hesitações internas, mas que, para as elucidar, confia mais na descrição de pormenores externos do que na psicologia das suas figuras. Escreve numa espécie de êxtase, espantado com as revelações poéticas da sua escrita ou com a sua própria eloquência imaginativa, mas ainda mais com o que da verdadeira Natureza lhes escapa; em cada frase estamos à espera de encontrar uma epifania, uma descoberta essencial. As palavras parecem pedras preciosas, cuidadosamente escolhidas para serem engastadas numa joia. Ter de o traduzir deve ser uma tragédia, pelo que se perde de som, de iridescência visual. E, no entanto, como o brilho da sua escrita não é apenas superficial, a profundidade sobrevive — é sempre melhor lê-lo traduzido do que não o ler. John Banville é um ficcionista que gosta de pensar que também é um poeta, um pintor, um músico, até um coreógrafo. É assim que torna estranhamente eloquente a mudez de tudo o que não é humano e nos mostra, imaginando-as, as coisas, as pessoas e o mundo tal como são.
O que pensa do facto de a maior parte das críticas e comentários ao seu último livro, A Guitarra Azul, defenderem que é um romance bem escrito, mas que está longe de ser o seu melhor livro? Para si, um novo romance é apenas mais um no conjunto da obra, tal como um novo filho integra de modo natural a família já constituída, ou tem ser o melhor de todos?
Antes de mais, eu nunca leio as críticas aos meus livros, o que me dá uma sensação de grande liberdade e leveza. Não escrevo para os críticos, nem para os académicos, escrevo para os leitores e tento escrever cada livro o melhor que consigo. Mas, como tudo na vida, por mais planos que faça, quando começo um livro nunca sei onde ele irá parar. Sou incapaz de avaliar os meus livros: são todos péssimos.
Não há nenhum de que goste mais?
Os Infinitos [2009, Asa] foi o que mais se aproximou do que eu queria que ele fosse. Mas eu não sei nada sobre os meus livros. Ainda por cima, com a idade que tenho, já me esqueci da maior parte deles…
Os Infinitos tem um ambiente próximo de Na Minha Morte…
Sim, talvez.
Inspirou-se no romance de Faulkner?
Nunca me inspiro em ninguém. Hoje em dia, só eu é que me sirvo de inspiração.
«Ah. O amor. Sim. O ingrediente secreto de que me esqueço sempre e deixo de fora.» [A Guitarra Azul] Todos o seus livros parecem dizer-nos que não colhemos nada de bom em sermos politicamente corretos, sobretudo se formos um artista. Para criar arte, não bastam as boas intenções e os bons sentimentos, pelo contrário. Concorda?
Absolutamente. A arte tem ser amoral, apolítica. Não deve querer trazer qualquer bem ao mundo. Há essa ilusão de que a arte nos faz pessoas melhores; não faz. A arte apenas pode fazer-nos sentir mais intensamente vivos, por um breve momento. Na sétima Elegia de Duíno, Rilke questiona o porquê de ser humano e de estar aqui, e diz: “Mas porque estar aqui é muito, e porque tudo / o que é daqui aparentemente precisa de nós, estas coisas efémeras, que / estranhamente nos dizem respeito. A nós, os mais efémeros.” [trad. Maria Teresa Dias Furtado] É uma descrição perfeita. Porque estamos aqui, no curto espaço de tempo em que aqui estamos, devemos registar tudo da forma mais vívida e intensa que consigamos, e a arte ajuda-nos a fazê-lo. Felizmente, esse é o seu único propósito.
Sem qualquer intenção de resolver o que quer que seja.
Sim, claro. Um artista não é um político, um sociólogo ou um psiquiatra. Um artista é só um artista, criando o que de mais belo consegue criar e colocando-o no mundo. Escreve-se um livro apenas porque ele não existia antes, é só.
De O Mar: “Vejo-os ali, aos meus pobres pais, brincando rancorosamente às casinhas na infância do mundo. A infelicidade deles foi uma das constantes dos meus primeiros anos, um zumbido agudo, incessante, no ponto limite da audição. Não os odiava. Talvez até os amasse. O problema é que eles estavam no meu caminho, ocultando-me o futuro. Com o tempo eu viria a conseguir ver através deles, os meus transparentes pais.”
Já não me lembrava dessa passagem. É bastante bonita! [rio]
Metaforicamente, temos de matar aquilo ou quem mais amamos, para nos tornar-nos artistas ou, tão-só, para nos tornarmos nós mesmos?
Não creio que o artista seja alguém especial. Ele é apenas alguém que se concentra e que observa o que está à sua volta de um modo mais intenso do que o comum das pessoas. Não somos deuses. Pensamos que somos, mas não somos. Toda a gente tem essa sensação de que é preciso limpar a paisagem… Eu tive muita sorte: os meus pais morreram quando eu tinha trinta anos. O Kingsley Amis disse que o maior presente que um pai pode dar a um filho é morrer novo. Quando os nossos pais morrem, sentimos a falta deles, mas também nos sentimos…
… libertos.
Hoje, olho para os meus filhos e penso que eles devem estar a dizer para si mesmos: “Quando é que este se vai embora?» [risos]
Ser-se artista é ser-se impiedoso, um canibal, um ladrão (como o Olly). Nós roubamos coisas, mas só para lhes dar uma nova vida, para as renovar. A arte diz-nos: “Olha para esta cadeira, esta pessoa, este objeto… Vê como eu vou olhar para isto.” É por isso que, quando eu era novo, quis ser pintor. O olhar humano é extraordinário. O olhar do artista é quase indecente.
Imagino que não porque queira despir a realidade, mas apenas porque quer vê-la…
… tal como ela é. É maravilhoso ver como as crianças, os meus netos (tenho dois), olham para as coisas pela primeira vez. Os adultos só não acham o mundo um assombro permanente porque já se habituaram a ele. Pelo contrário, um artista nunca se habitua a andar por aqui. Eu nunca me habituei a estar neste mundo; continuo a achá-lo um lugar espantoso. Amo este mundo, mas nunca senti que aqui pertencesse. Não é que me sinta um estranho, mas também não me sinto em casa. A certa altura, o narrador de O Livro da Confissão [1990, Quetzal] declara (e foi a única vez em que escrevi usando a minha própria voz) que nunca se acostumou a estar nesta terra e que a nossa presença aqui é um enorme erro cósmico. Questiona-se sobre as pessoas que cá deviam andar e sobre como elas estarão, do outro lado do universo. E conclui que elas já se devem ter extinguido há muito, por habitarem esse lugar, algures, que nos estava destinado a nós, selvagens humanos. Acho que é verdade. Nós somos demasiado selvagens para esta Terra tão gentil. Nós somos o vírus mais bem sucedido que alguma vez por aqui apareceu. E, um dia, talvez o planeta consiga curar-se.
Foi por causa desta sensação de não pertença que comecei a escrever muito cedo, ainda criança. Não para absorver o mundo, mas para o observar e para dar conta do porquê de eu estar aqui. Observar é muito fácil; o difícil é dar conta do que se observa.
Para o observar melhor, o artista precisa de se afastar ou de se aproximar mais do mundo?
Tem se aproximar mais, é claro.
Mas creio que disse algures que, para se tornar um artista, a criança tem de sofrer muitos traumas, tem de ser rejeitada, posta de parte, afastada do mundo das outras crianças, ferida.
[ri] Bem, sou como um romântico do século XIX com as feridas por sarar e que acredita que o artista é uma pessoa ferida. Mas, quanto mais velho fico, mais me pergunto: quem é que não está ferido? Estamos todos feridos. Temos muita sorte em podermos aproveitar as feridas para criar algo belo. No meu caso, sinto-me um privilegiado por ter passado a vida a trabalhar a linguagem, porque a frase é a maior, a mais sofisticada, invenção humana. Houve civilizações que não inventaram a roda (como os incas ou os astecas), mas às quais a frase garantiu, precisamente, que se tornassem civilizações.
A figura central dos seus romances, essa voz narrativa quase sempre usada na primeira pessoa do singular, é preferencialmente um homem maduro, se não já velho. Um pintor, escritor, cientista, que tem atrás de si um percurso de sucesso que lhe dá margem para se permitir um excesso de misantropia, egocentrismo, desprezo pelos outros, cinismo em relação aos sentimentos convencionais. São figuras antipáticas por natureza, mas com uma grande capacidade de articulação, um grande domínio da frase. Para além disso, sabem de pintura, de ciência, parecem lidar bem com o francês e ao alemão, têm muitas referências de cultura clássica, sobretudo de mitologia grega. Acha que é por isso que suscitam tanta curiosidade nos leitores? Por serem homens intelectualmente superiores, mas moralmente bárbaros?
Acho que eles são apenas honestos. Não são sentimentais. Não inventam desculpas. Certa vez, um jornalista alemão perguntou-me, em relação a O Mar, como é que tinha sido capaz de não ser sentimentalista ao escrever um livro sobre um homem que acaba de perder a mulher. Nunca tinha pensado nisso. Respondi-lhe que o sentimentalismo é a morte da arte. Se olharmos para o mundo suficientemente de perto, com honestidade, é impossível sermos sentimentais.
Os seus protagonistas não dispensam o humor.
De todo, acho que são até muito engraçados.
Aliás, o cinismo deles tem um charme estranho.
Cinismo é apenas uma outra palavra para realidade. Alguém me acusou uma vez de escrever livros muito sombrios. Eu disse: “Olhe para o mundo!” Quando estava a encenar uma peça em Londres, Beckett foi questionado por um dos atores sobre o porquê da sua visão tão negra sobre o mundo. Ele respondeu: “Na parte de trás dos bancos do táxi que me trouxe hoje para o teatro, havia dois anúncios. Um pedia dinheiro para o treino de cães-guias de cegos; outro pedia dinheiro para as pesquisas de uma cura para o cancro. Em que mundo é que você vive?» Ele tinha toda a razão. Este mundo é terrível, mas, paradoxalmente, é extremamente belo. É isso que os meus narradores tentam comunicar: esta estranha e complexa mistura de requinte e de terror.
Qual é o papel do humor na sua obra, que é, afinal, tão séria?
Oiça, as pessoas não apanham nem metade das piadas que eu conto nos meus livros! [dou uma gargalhada, e Banville prossegue, com um sorriso faceto] Talvez com o tempo lá cheguem.
Um dos grandes problemas dos romancistas é que as pessoas pensam que basta ler uma vez um romance. Devemos ler cada romance pelo menos duas vezes! Da primeira vez, somos todos crianças curiosas à espera de ver o que acontece na página seguinte. No final, quando ficamos a conhecer a história toda, então devemos voltar à primeira página e reler o livro todo, agora, sim, com atenção ao modo como ele está escrito.
É o que se exige a quem recenseia livros, mas raramente é viável fazer-se uma releitura integral. Continua a escrever recensões? Porquê?
Sim, gosto muito de fazê-las. E leio os livros com toda a atenção. Se são bons, leio-os duas vezes. Escrever recensões é uma tarefa nobre, e necessária.
Por que é que não lhes chama críticas?ticas﷽﷽﷽﷽﷽ma crse e necessaz?
enç seia livros. s vezesvez.s! [risos] lhe diss superiore, mas moralmente béé que
Porque não sou um crítico, sou um recenseador de livros. Apresento aos leitores (quais quer que eles sejam, do Guardian ou da New York Review of Books) livros recentes que considero que vale a pena serem lidos. Trata-se de uma opinião pessoal, que tento que seja o mais honesta, clara e verdadeira possível. Se o livro for mau, não escrevo sobre ele. Reconheço que, às vezes, me engano. É precisamente isso que define um recenseador de livros.
Reconsiderou o que escreveu sobre Sábado, de Ian McEwan [“A day in the life”, New York Review of Books, 26/05/2005]? Acha que se enganou?
Não, de todo. Mas digo-lhe qual foi o meu erro: o enfoque do texto. O romance tinha sido publicado em Inglaterra há vários meses. Eu queria destacar a estupidez dos recenseadores que embandeiraram em arco com um romance escrito desleixadamente, com um argumento estúpido. Teria mandado o livro para trás, sem escrever sobre ele, se não me tivesse irritado tanto a aclamação entusiástica de um romance tão mau. Era sobre isso que eu queria escrever. Ganhei muitos inimigos entre os recenseadores. E eles vingaram-se quando eu publiquei o meu romance seguinte. Hoje, lamento ter sido tão cruel para com Ian McEwan. Devia ter enfatizado que não era tanto o livro que estava em causa, mas a forma como foi recebido.
Imagina o que ele deve ter sentido quando leu a recensão?
Bem, espero sinceramente que o tenham avisado e que ele não a tenha lido. Afinal, é para isso que servem os melhores amigos…
A delinquência e o furto são temas muito frequentes nas suas ficções, funcionam como uma espécie de moldura. O roubo talvez seja uma metáfora para o tipo de apropriação que os seus protagonistas fazem do mundo à volta, impondo-lhe a sua personalidade e os seus impulsos criativos psicopatas ou apenas autocentrados.
O furto é uma metáfora para o que o artista faz: apropria-se das coisas. Destaca-as do mundo, torna-as únicas e notória a sua presença, antes desapercebida. Vou tentar explicar como. O artista concentra-se intensamente no objeto. O objeto não está à espera dessa atenção; antes ele estava apenas ali, discreto, escondido. O artista foca ainda mais o olhar sobre ele. O objeto ilumina-se, numa espécie de autoconsciência. E começa a corar. Quando as coisas [e as pessoas] coram, é quando ficam mais vulneráveis, mais ternas. Tornamo-nos intensamente conscientes de nós mesmos quando coramos. A tarefa do artista é essa: fazer o mundo corar. [pausa] É o que também acontece quando nos apaixonamos. A pessoa por quem nos apaixonamos é, em simultâneo, um espelho (no qual nos revemos e revemos quão bonitos somos) e um objeto de súbita e intensa atenção.
Os fantasmas também estão sempre presentes. Tudo parece matéria espectral nos seus livros. O olhar nos espelhos. O olhar dos espelhos. As casas onde se viveu na infância e onde quase todos os protagonistas teimam em voltar. Os mortos na família, mesmo que seja (e quase sempre é) para se reafirmar que se lhes teve pouco amor. Os próprios objetos quotidianos e os elementos atmosféricos. Todos os seus protagonistas são investigados enquanto vestígios espectrais. Ao mesmo tempo, simetricamente, tudo isto é mostrado como se fosse a única coisa que importa e que, se não está viva, representa o lado mais vivo de quem delas fala. Porquê?
É uma excelente pergunta. [pausa] Não sei se sei responder-lhe. Tenho de pensar um bocado. [pausa longa] Pensamos que conhecemos os seres humanos, pensamos que conhecemos o mundo, mas só vemos a superfície. Como disse Nietzsche, é na superfície que encontramos a verdadeira profundidade. Isso é verdade, até certo ponto. Podemos viver com uma pessoa durante cinquenta anos e, um belo dia, sermos surpreendido por algo que ela diz, forçando-nos a rever tudo até então. Não deixa de ser fantástico descobrirmos, assim, uma nova pessoa. Conhece aquela sensação estranha que sentimos quando, como os linguistas identificaram, o significante vagueia liberto do significado? Por exemplo, pensamos na palavra “cavalo” e, de repente, é só um som, sem qualquer ligao﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽gnificado liberto do significante», mundo. Mas sção com o animal de quatro patas. O mesmo pode acontecer com as pessoas. E, então, perante essa estranheza, nós pensamos também: este não sou eu.
Porque é assim que nós lidamos com o mundo: transformamo-lo em nós mesmos.
Como num espelho?
Sim, mas tudo o que está à nossa volta tem de estar refletido em nós. E, de vez em quando, estranhamos e estranhamo-nos: “Este não sou eu!” Como a criança, quando descobre que não existe só ela (e, talvez, a mãe dela) no mundo. É nesse momento que surge a autoconsciência humana. Porque, se o mundo me é estranho e eu não consigo abarcá-lo todo, então, um dia, o mundo pode querer expelir-me. Lembro-me perfeitamente de quando, em criança, me dei conta disto. Tentava por tudo não adormecer à noite, com medo de morrer. Nunca me deitava apoiado neste lado [esquerdo], porque estava convencido de que, se o fizesse, sentiria o meu coração a parar.
Por falar em fantasmas de nós mesmos, quem é o Quirke [patologista irlandês que protagoniza sete dos nove romances policiais que, desde 2006, Banville escreveu sob o pseudónimo de Benjamin Black; em 2014, Andrew Davies e Conor Mc Pherson adaptaram as ficções de Quirke para uma série televisiva da BBC, com Gabriel Byrne no papel principal]?
Não sei.
Quirke é um espelho de Benjamin Black?
Não. Também não sei quem é o Benjamin Black. É frequente, em conversa, misturá-los aos dois, sem querer. De algum modo, eles são a mesma pessoa. Uma pessoa completamente diferente de mim…
… ou não.
Diria antes: completamente não eu. Mas, na verdade, o John Banville também nãoao existe﷽rdade, o John Banville tambrente de mim. Mas, o meu coraçundo. Mas sãoão existe. O que existe sou eu, um cidadão, que anda no mundo, que vota, que tenta ganhar a vida, que, frequentemente, faz figuras tristes. Quando me levanto da minha secretária, aquela pessoa que escreve os livros deixa de existir.
Como é que passa, consistentemente, da escrita de Banville para a de Black?
Não é difícil, acredite. Durante trinta e cinco anos, fui jornalista. Escrevia para jornais diários, por isso trabalhava à noite. Passava os dias a escrever [ficção] e, à noite, voltava à minha forma humana, ia para a redação e tornava-me uma outra pessoa. Nós pensamos que somos seres singulares, mas isso não passa de uma ilusão, que nos ficou talvez da concepção religiosa de “alma”. Dentro de nós, existe uma luz, que brilha permanentemente.
A cada dia, morrem e nascem milhões de células dentro de cada um de nós.
Refazemo-nos a cada minuto. E somos diferentes pessoas a cada circunstância. Deus nos livre de sermos singulares!
John Banville criou e tem uma voz literária singular.
Sim, mas sabe o que estou a fazer agora? Estou a escrever a segunda parte de Retrato de uma Senhora, de Henry James. Quem diria, hã? É uma direção totalmente nova. E é um fenómeno bastante estranho. Não sou John Banville, não sou Benjamin Black, não sou Henry James… Às vezes, estou sentado a escrever, levanto-me para ir buscar um café e, quando regresso à secretária, pergunto: «Então, como vai a escrita?» E há ali dois ou três parágrafos novos que não me lembro de maneira nenhuma de ter escrito.
Que mistério…
A sério, sinto-me totalmente de fora. É um processo absolutamente fascinante! Escrevi The Black-Eyed Blonde: A Philip Marlowe Novel durante um verão inteiro [o romance foi editado em 2014] e não tenho a mais pequena memória de o ter feito. Falei com um psicólogo que me disse tratar-se de um fenómeno conhecido: quando desempenhamos uma tarefa muito específica, mas que não nos é essencial, pode dar-se uma espécie de auto-hipnose. Foi o que aconteceu comigo: eu não estava ali enquanto escrevia.
Uma experiência gótica.
Sinto o mesmo com o que estou a escrever agora. Uso palavras, formulações frásicas que jamais usei. Às vezes, vêm-me à cabeça palavras cujo significado tenho de ir pesquisar no dicionário.
Surpreende-se a si mesmo?
Sim. Está a ver? Para o ano, posso ser a Jane Austen…
É por isso que precisaremos sempre da guitarra azul…
Tudo está sempre a mudar. Mas, [no poema “The Man With the Blue Guitar”, Wallace] Stevens engana-se quando diz que as coisas como são mudam na guitarra azul. Ele usa a palavra «mudam» num sentido muito específico e algo enganoso. Em vez disso, devia dizer: as coisas são transfiguradas na guitarra azul. Elas continuam a ser o que são, são-no sempre. Mas transfiguram-se; assumem uma nova figura. Tal como acontece quando são sujeitas ao tal olhar do artista, que as torna aquilo que elas de facto são. [pausa] Há várias décadas, apaixonei-me por uma rapariga — mais do que ela se apaixonou por mim, diga-se de passagem. Conhecemo-nos numa festa e ela não gostou mesmo nada de mim: achou-me arrogante e opinativo — e estava cheia de razão. Mas, passada uma semana, ela estava apaixonada por mim. Entretanto, assisti à transformação, à transfiguração dela. Permaneceu quem era, mas tornou-se ela mesma. Tal como eu me tornei eu mesmo. A paixão não durou muito, mas ainda hoje nos vemos de tempos em tempos. Na última vez que a vi, quando nos encontrámos (assim, já velhos) para almoçarmos juntos, em Nova Iorque, ela corou. E eu corei também, de certeza.
Onde é que nós íamos mesmo?
Já não faço ideia. Mas, de qualquer modo, estamos bem, porque eu queria falar-lhe sobre as mulheres…
Ah, as mulheres para mim… Eu sou mesmo um romântico do século XIX com as feridas por sarar. Para mim, as mulheres são o supra sumo da beleza e de tudo o que há de mais precioso e doce na vida. Vivi toda a minha vida apaixonado pelas mulheres. Vejo uma velhinha na fila do supermercado à procura do troco na sua carteirinha, e apaixono-me por ela.
Está a falar da vida real, certo?
Sim. É fantástico, porque cheguei a uma idade em que posso dizer às mulheres tudo o que me apetece. Uma empregada de café aproxima-se de mim e eu digo-lhe: «Tem uns olhos lindíssimos!» Há dez anos, jamais me atreveria a fazê-lo. Hoje, posso… porque elas me vêm como se fosse o pai delas.
Ou vê-se a si mesmo como se fosse pai delas.
É verdade, tenho duas filhas e revejo-as nelas. Mas… Na semana passada, estava a caminhar por uma rua de Dublin — o tempo estava assim como hoje; suave, de final de primavera, início de verão — quando uma rapariga passou por mim e eu apanhei o perfume dela no ar: um perfume maravilhoso… Só os homens conseguem captar esta espantosa essência feminina, feita delas mesmas. Não é um perfume artificial; é o cheiro delas, das mulheres e do que elas são. Por momentos, fiquei num estado de felicidade absoluta.
Sim, sim, mas, então, por que é que as mulheres não passam de terceiras figuras nos seus livros?
Isso não é verdade!
E por que é que, por mais feios e velhos que eles sejam, os seus protagonistas têm sempre muito sucesso com as mulheres e têm com elas intensas relações físicas, até mesmo obsessivas?
[ri] Talvez eu, o pequeno homenzinho feio, tenha tido sempre imenso sucesso com as mulheres… [risos]
E elas são sempre mais novas e tendem para o rubenesco, são cheias, gordinhas e louçãs.
Tem razão, é o tipo de mulher de que gosto: com formas de mulher. Já viu as modelos atuais? Têm as ancas alinhadas com os pés! São horríveis!
Até mesmo em Shroud [2002], onde o protagonismo parece por uma vez dividido entre o homem velho e a mulher nova [Class Cleave], a figura feminina acaba por ser contaminada por um lado trágico de deficiente emocional, que a torna incapaz de disputar o primeiro plano.
Mas ele também tem esse lado! Só que o protagonista é ele. Quando publiquei O Mar, o meu amigo Rodrigo Fresán [romancista argentino] disse-me que, ao ver o título, pensara que se tratava do livro [da versão] de Class Cleave, e que eu devia escrevê-lo. Respondi-lhe que isso é impossível, porque Class Cleave tem de permanecer um enigma. Por outro lado, estou a sentir imenso prazer em escrever o livro de Isabel Archer [protagonista de Retrato de uma Senhora]. É curioso, como lemos o livro quando éramos novos, acho que todos nós pensamos nela como uma mulher de meia-idade. Nada disso: no início do livro, ela tem 20 anos, casa-se dois anos depois e o casamento acaba ao fim de seis anos. Ou seja, a história acaba quando ela tem 28 anos! Acho que o Henry James não deu conta disso. Acho que ele também pensou nela como sendo uma mulher de meia-idade. Afinal, ela é muito nova. Adoro escrever sobre ela. Apesar de o fazer na terceira pessoa, sinto-me completamente dentro dela.
Eu sou Isabel Archer…
Isabel Archer, c’est moi! E é delicioso, porque ela está a descobrir-se a si mesma. Sabe, li o livro pela primeira vez em Florença, muito perto do sítio onde Henry James começou a escrevê-lo. Tinha vinte e poucos anos e identificava-me por completo com Isabel Archer, com a sua liberdade de espírito. Quando reli o romance muitos anos depois, descobri o monstro egoísta que ela é. Num certo sentido, ela é tão má como Gilbert Osmond [o homem sem escrúpulos que a seduz e se torna seu marido], e apercebe-se disso nesta segunda parte da história. No outro dia, escrevi um parágrafo em que ela está a almoçar, servida por uma criada, que lhe parece tão leve e calorosa como um raio de sol que entrasse pela janela. Isabel pergunta-se: “Alguma vez terei sido assim e iluminado assim uma sala onde entrei? As pessoas que me amaram, dirão que sim. Contudo, talvez a luz que elas acreditam ter-me visto irradiar fosse apenas a incandescência exterior do meu amor próprio.” Portanto, ela está a aprender a viver no mundo. E é por isso que lhe vou dar a vida que Henry James não lhe deu. Acredito que ele está ao meu lado nisto.
Mas, não quero deixar de dizer que acho que as pessoas interpretam mal as mulheres dos meus livros. Elas parecem maltratadas e desconsideradas, mas estão sempre no centro.
Estão preservadas porque não são protagonistas ou narradoras?
É isso. Em Athena [1995], por exemplo, o protagonista tem uma ligação com uma mulher e, de repente, apercebe-se de que ela não existe, nunca ninguém a viu. (Athena é uma história de fantasmas e só me apercebi disso quando acabei a finalizei) Ela é um fantasma, mas com uma presença sexual fortíssima. E veja como a Polly, em A Guitarra Azul, é retratada por Olly de uma forma completamente errada. [«Não vinha maquilhada, nem sequer batom pusera, e as suas feições pareciam esborratadas e quase anónimas.», pág. 77] Ele passa o tempo a dizer que ela é desleixada e, por fim, ela aparece de saltos altos, e obriga-o a olhá-la com outros olhos.
Os seus protagonistas narram trajetórias de vida desagradáveis, são antipáticos, contam sempre histórias de pouca simpatia pelos outros, quando não mesmo de desprezo, mas nunca se estão a desculpar ou a achar que foram bonzinhos ou a fazer-se de vítimas (como todos temos tendência a fazer). Eles confessam-se, investigam-se e desnudam-se sem contemplações. Foram egoístas e brutais com os outros humanos, mas agora, connosco, estão, na sua narração, apenas a tentar chegar à verdade. Se os virmos por este prisma, são quase generosos…
São apenas seres humanos; comportam-se como se não o fossem, mas são-no. O Olly, por exemplo, apresenta-se-nos muito pior do que, na verdade, é. Gosto imenso da autoironia dele. A passagem de que mais gosto do romance é quando ele narra como as suas pernas e braços se atraíram mutuamente e ele se tornou um objeto circular, enrolado sobre si mesmo. [ri]
A dada altura, ele fala do «chicote sedoso da autorrepreensão».
O Ed Victor [o agente de Banville] contou-me a melhor piada de sempre sobre a condição humana. Um judeu está a tomar o pequeno-almoço. Barra uma torrada com manteiga, deixa-a cair no chão por acidente, ela cai com o lado barrado para cima. E ele diz: «Oh, meu Deus, devo ter barrado o lado errado!» [risos] É uma delícia, não é? É a minha anedota preferida: curtinha, honesta, certeira.
Todas as suas ficções são livros de confissão, escritos não para que incriminemos os protagonistas/narradores, mas mais para que os desculpemos pelo seu mau feitio e pelas suas faltas. Ou seja, todos os seus livros se poderiam chamar O Livro da Confissão [título do primeiro romance de Banville, de 1989]. Alguém disse isto, já não me lembro quem.
Fui eu que o disse.
Desculpe.
Não tem problema. Mas não creio que sejam livros de confissão.
São mais análises psicológicas?
Jamais! Eu detesto a psicologia! Há uma anotação fabulosa no diário de Kafka, em que ele diz: “Psicologia, nunca mais!” Os meus livros não são psicológicos, são testemunhais: isto é o que eu vi, isto é o que fiz do que vi, isto é o que pensei sobre o que vi. Não tenho qualquer pretensão de entrar na mente de outra pessoa ou dentro do que quer que seja. A superfície é tudo o que tenho, e já é muito.
A descrição do mundo externo pode funcionar como um substituto da análise psicológica.
Diria antes que… Bem, se tenho de ser alguma coisa, sou um pós-humanista. Não creio que os seres humanos sejam o centro do universo. ario﷽﷽﷽﷽﷽﷽ no diologia!sicologia.sse]s, mas mais para que os desculpemosres nos meus livros.eçou a ecsrevárioário
Aliás, prova disso é a sua capacidade de alargar o impacto de alguma coisa, através da metáfora, ligando essa coisa a tudo o que ela não é. Para mim, os seus livros podem ser apreciados como prosa ou como poesia…
O meu amigo John McGahern [romancista irlandês] faz uma excelente distinção entre o verso, a prosa e a poesia. A poesia resulta da intensificação da língua e da concentração dessa intensificação. Eu não conseguiria escrever versos, porque não sei como fazê-lo. Mas tenho uma relação profunda com a poesia.
Desde criança e das aulas do Padre Larker, entusiasta professor de Inglês?
Oh, sim! No meu primeiro dia naquela escola [o St. Peter’s College, em Wexford, a sua terra natal], que era também o primeiro dia dele como professor, eu senti que ele estava em pânico. Logo no início da aula, ele pediu que um de nós lesse a Ode a Nightingale, de Keats. Eu levantei-me e recitei-a de cor, fingindo que estava a lê-la do livro. Ficámos amigos para sempre.
Para mim, a poesia, como a música, é uma espécie de alquimia, de magia, que eu não compreendo como é feita. Leio a poesia de Yeats ou de Keats e acho-a um milagre.
Crê que são epifanias? Como aquelas que estamos sempre à espera que aconteçam nos seus livros e nunca acontecem?
É esse o efeito que pretendo atingir. Não escrevo em verso, escrevo prosa, mas aspiro a uma intensificação da linguagem como a que se dá na poesia. Mas, a poesia pode não ser mais do que som. Costumo dar o seguinte exemplo, retirado de Quatro Quartetos, de T.S. Elliot: “Garlic and saphires in the mud / Clot the bedded axle-tree.” [“Alho e safiras na lama / Coagulam no leito das árvores”] Isto não quer dizer rigorosamente nada! E, no entanto, [em inglês] tem uma sonoridade sublime. Esta música… é impossível atingi-la na prosa. A prosa tem de fazer sentido.
O efeito da poesia na sua prosa é como um movimento da pintura figurativa para a pintura abstrata.
Quero crer que seja o contrário; um movimento do que é incoerente para a realidade. Um movimento na direção da visão, do cheiro, do sentido da coisa em si: a realidade absoluta é isso e é isso que eu, e a poesia, tentamos atingir.
A sua atenção ao que é visual e ao que é dirigido aos sentidos aproxima-o da sensibilidade de um pintor.
Sim, mas também existe uma ligação com a música. Não sei se as traduções conseguem captá-lo, mas o ritmo da frase é muito importante para mim. Adoro Nabokov. Alguém me disse que ele era completamente surdo de ouvido. É isso; ele é estritamente pictórico, a prosa dele nunca é musical. Ele nunca canta, mas consegue dar-nos essa sensação de absoluta imediaticidade.
Mas o Nabokov era um sinesteta, cruzava os vários sentidos, numa espécie de composição. Ele refere a sua sinestesia em Fala, Memória e, se bem me lembro, diz que possui uma «audição colorida».
É verdade, sim. Alguém me perguntou ontem, numa entrevista, por que escrevo, por que quero viver. E eu citei o final de Lolita: “I am thinking of aurochs and angels, the secret of durable pigments, prophetic sonnets, the refuge of art. And this is the only immortality you and I may share, my Lolita.” [“Estou a pensar em bisontes extintos e em anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que talvez possamos partilhar, minha Lolita.”, tradução livre] É bonito, não é? Fico a lacrimejar sempre que cito isto. [funga] Esta passagem canta. Mas parece-me que canta involuntariamente. É isso que é fantástico na prosa de ficção: tem música, tem poesia, tem pintura. E, se for mesmo bem feita, até tem dança, uma sensação de dança. É fantástico trabalhar a prosa. Ao mesmo tempo, a prosa é trivial, no sentido em que se refere às pessoas. Até Finnegans Wake tem um enredo, trata de pessoas. É impossível escrever um romance sobre nada, porque o mundo impõe-se sempre. O mundo chama-nos de volta: “Olha para mim. Sou mau, imbecil, sujo, estúpido, espantoso, sou o mundo.” É isso que temos de expressar.
Sempre se referiu à origem desconhecida da sua escrita, e assume-a cada vez mais como “um instinto confuso”. Acha que, até ao final da sua vida, ela permanecerá um mistério para si?
Sabe, ainda continuo a praticar para ser escritor. Diz-se que, aos 92 anos, no leito de morte, Henry James ainda mexia a mão, como se estivesse a escrever. Assim serei eu também.
LER Setembro 2016 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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