A lição de Maria de Lourdes Modesto
Aos 79 anos, Maria de Lourdes Modesto conserva a abertura de espírito, a curiosidade e o perfeccionismo que a tornaram famosa, desde os anos 50, na divulgação da gastronomia na televisão ou em livros. Cozinha Tradicional Portuguesa, de 1982, tomou-lhe vinte anos de estudo e pesquisa e é ainda a obra de referência na recolha e preservação do património gastronómico nacional. Numa vasta bibliografia, toda editada pela Verbo, Maria de Lourdes Modesto ensinou os portugueses a comer, a cozinhar, e, sobretudo, a considerar estes actos como expressões de cultura. Nem gastrónoma, nem chef, nem cozinheira, nem dona de casa tradicional ou guardiã do passado, afirma ser um gourmet ultramoderno. Ainda dá lições a todos os que se interessam pela verdadeira arte da gastronomia.
Hoje, qual é a sua posição entre os profissionais da gastronomia portuguesa?
É muito ambígua. Dou-me muito, sou amiga daquelas estrelas que não sei se são estrelas para ficar ou estrelas cadentes… E daí nasce uma grande confusão entre o trabalho deles e o meu; que não são concorrentes, mas sim completamente distintos. Há pouco tempo, um deles escreveu-me e tratou-me por chef. Ora, a minha formação não é de todo essa.
Mas muitos deles utilizam um dos seus livros, a Cozinha Tradicional Portuguesa…
… que não foi feito para eles. Quando trabalhei na recolha das receitas que lhe estão na base, nunca pensei que depois as pessoas iriam para a cozinha fazê-las. Cozinha Tradicional Portuguesa partiu da intenção de fazer um retrato da cozinha portuguesa em 1961. Nunca quis ser mais do que isso: um retrato. Acontece que, hoje, todos me fazem o favor de comprar o meu livro e dizem que vão lá buscar coisas, mas, ao mesmo tempo, dizem-me ultrapassada e antiquada. Atenção: o meu trabalho pára à porta da cozinha de família. É completamente diferente da cozinha que eles fazem.
Que é uma cozinha de autor?
Eles chamam-lhe de autor. Se é ou não, não sei. Sei que não temos possibilidade de a fazer nas nossas casas. Eu frequento e respeito muito os livros dos grandes chefes [refere o monegasco Alain Ducasse, mestre da fusão entre tradição e inovação, ou o francês Joël Robuchon], porque quero estar na onda. Mas não é esse o meu caminho e dos meus livros.
Cozinha Tradicional Portuguesa é um livro de cultura e incentivou o regresso de um património gastronómico às cozinhas portuguesas. Nesse sentido, é também uma lição prática.
Eu não cheguei à cozinha por vocação. Comecei por ser professora e é isso que eu acho que sempre fui e que mais gosto de ser. Dei aulas de Economia Doméstica no Liceu Francês Charlespierre durante seis anos e, entre muitas outras coisas, ensinava Culinária. Depois levaram-me para a televisão, para fazer uma rubrica num programa feminino chamada ‘Segredos de Polichinelo’. A ideia era falar de coisas que as pessoas sabiam fazer, mas que desconheciam que sabiam fazer.
A estreia foi a 15 de Maio de 1958, o programa iria durar doze anos, e logo na primeira emissão a Maria de Lourdes começou por ensinar como cozinhar… alcachofras! Que ninguém sabia como cozinhar.
Pois, eu abandonei logo a filosofia da rubrica. Porque percebi que a televisão era um meio fantástico para divulgar conhecimentos. Eu tinha trabalhado também com crianças deficientes numa escola com um quintal muito grande, onde cresciam alcachofras. Era a única que as apanhava e cozinhava.
Nessa época, quem é que falava ou escrevia sobre culinária?
Apenas umas senhoras donas de casa a dizer que faziam uns rissóis muito bons. Eu falava muito de gastronomia com os meus colegas do Liceu Francês. Sentávamo-nos à mesa e discutíamos se o souflée devia ou não levar um pingo no meio, qual era o melhor vinho para servir, o que diziam os chefes. Era muito mais do que comentar se o prato estava bom ou não. Com eles, eu percebi que a cozinha era uma outra coisa.
A sua visão era estrangeirada?
Começou por sê-lo, sim. Porque os portugueses têm uma visão muito diminuta sobre a gastronomia. Mais, vêem-na como uma coisa que rebaixa. Quando querem atirar uma pedra às mulheres, lá vêm com a cozinha…
Ainda hoje?
Eu própria sofro desse estigma. E sou sempre a única mulher entre homens. Há pessoas que olham para mim e me vêem como ‘uma cozinheira’. Não percebem que a base do meu trabalho tem sido a curiosidade de passar cá para fora muita coisa.
Quando se estreou na televisão, fez logo a diferença por ser bonita, elegante, por falar com uma certa cultura e se afastar do chavão da mulher na cozinha.
Era muito nova e tinha muito sentido de humor. O [crítico] Mário Castrim disse logo: «Finalmente aparece uma pessoa que sabe falar em televisão.» Eu era a «rapariga dos olhos rasgados» que elevava a cozinha a outro nível. Também porque, com o background de todos aqueles anos de contacto com os franceses, falava de facto de outra maneira. Não dizia: «Isto é uma batata.» Explicava que é um tubérculo e que as há melhores para umas coisas ou para outras. Também foi importante o facto de me terem convidado ao mais alto nível para trabalhar para a Fima Lever, uma empresa de produtos alimentares com uma dimensão internacional, a primeira a ter um departamento de marketing. Ali, aprendi que temos de fazer aquilo que as pessoas querem, de ter em consideração as críticas. Essa abertura conjugou-se com uma outra: a obrigação de estudar. Os meus livros não são só livros de receitas. São o resultado de muito estudo.
Entretanto, tinha ido para a Sorbonne, em Paris, com uma bolsa do Instituto Franco-Português. Porque é que, em vez de ir estudar gastronomia, foi estudar Literatura Francesa?
Porque, graças ao contacto com os franceses, eu já sabia que o que me faltava mesmo era cultura.
Essa é, aliás, a sua lição de sempre: comer é um acto de cultura. Aceita a cultura do fast food?
Às vezes chamam-me gastrónoma, e eu não gosto. Eu sou o que um dia me chamaram: um gourmet hipermoderno. Porque me sinto tão bem a comer um bom hambúrguer como num dos melhores restaurantes de Lisboa – e, em Lisboa, hoje, existem sítios onde se come muitíssimo bem, com a cozinha mais vanguardista que há. Agora, se o hambúrguer é bom e a outra comida má – o que já me tem acontecido – eu prefiro o hambúrguer, não tenho nada contra. Aliás, sei que não vou ter problemas de saúde se comer nessas cadeias de fast food. Isto é importantíssimo. Eu dou muita importância à segurança alimentar. Quando toda a gente criticava a ASAE, já eu era quem mais a defendia.
Certo, a culinária é uma alquimia. Mas tudo depende de uma identidade qualquer daquilo que se come, não acha?
A identidade é muito importante. Por exemplo, acho muita graça ao Jamie Oliver [chef inglês, autor de inúmeros bestsellers de culinária e programas de televisão]. Tem uma boa preparação, é um grande comunicador. Aliás, muitas vezes, se eu pudesse, substituia a minha sopa do jantar por aquilo que ele faz na televisão. O Jamie não é um cozinheiro: é um personagem inimitável.
Estamos a falar da mesma coisa: a necessidade de existir uma identidade qualquer, que não é necessariamente de autor.
Exactamente. Já toda a gente aprendeu e sabe repetir que a cozinha é um dos factores mais importantes da identidade de um povo. Mas, depois, não praticam este princípio, nem em casa, nem nos restaurantes. Hoje, graças a Deus, existem pessoas muito boas que fazem e vendem excelente cozinha portuguesa nos seus restaurantes. Só que ninguém fala nelas.
Mas as pessoas, no dia-a-dia e neste momento de crise económica, cada vez comem mais comida portuguesa no restaurante da esquina.
E não estão só a comer mais barato. Estão a comer aquilo de que gostam.
O seu livro contribuiu para reabilitar a memória de muitas receitas tradicionais. Mas, desde os anos 60, mudou muita coisa. Por exemplo, existe muito maior diversidade de produtos disponíveis e isso provoca mudanças também na cozinha, não?
Eu gosto do que aconteceu. Gosto de ver chefs portugueses cada vez mais cultos e com maior formação. Não gosto e não aceito é que cozinheiros estrangeiros, que dizem gostar da nossa cozinha, a tentem modificar para nos prestar um serviço. Isto é uma enorme ofensa. Aceito a evolução feita por nós, mas principalmente a que sai da casa de família. Estamos numa altura em que não se sabe para onde vai a gastronomia ocidental. Porque, a par de uma grande vanguarda, houve uma grande demonstração pública de apreço pela tal memória, pela tradição.
Ou seja, valoriza-se tanto o El Bulli, do chef Ferran Adriá, [em Barcelona, considerado o melhor restaurante do mundo e onde nasceu a gastronomia molecular] como a boa cozinha familiar feita como deve ser?
O Joaquim Figueiredo [um dos chefs protagonistas da renovação gastronómica portuguesa] dizia-me que era mais difícil fazer o que eu faço do que a cozinha moderna. Por causa da memória. É dificílimo reconstituir o gosto da comida da mãe, da tia ou da avó. Houve um tal exagero e tais abusos por toda a gente em desatar a fazer cozinha de autor que, muitas vezes, esta se resume a uma pintura, e de má qualidade.
A culpa é da moda da imitação da nouvelle cuisine [nascida em França nos anos 70]?
Foi uma época muito má, sobretudo porque o que se fazia em Portugal era uma caricatura da cozinha francesa. Hoje, o problema é que os chefs que fazem suposta cozinha de autor só cozinham uns para os outros. Andam sempre a ver se conseguem espantar o outro.
O que não é necessariamente mau…
Se se restringir a isso, é. Por exemplo, o Vítor Sobral é um dos cozinheiros que mais admiro. Mas o que ele faz não é propriamente cozinha de autor. Ele tem gosto em preservar na sua cozinha um sabor português.
Consegue definir esse sabor português?
Não sei defini-lo; sei senti-lo. Sabemos que a gastronomia é uma das coisas de que os estrangeiros mais gostam em Portugal. O que lhes fica quando partem é esse nosso sabor.
É possível reproduzir esse sabor quando ele sai sobretudo da cozinha de família tradicional?
Quando os médicos nos mandam comer como comiam os nossos avós, não sabem o que estão a dizer. Porque, na ementa dos nossos avós, a fome fazia parte da refeição. É preciso dizer que o meu livro Cozinha Tradicional Portuguesa quase só traz a comida das festas. Foi para salientar isso que, logo depois, senti necessidade de fazer o Livro das Festas [com o jornalista Afonso Praça, já falecido]. Para explicar que determinado prato só se comia uma vez por ano.
Agora estou a acabar um livro sobre cogumelos selvagens e o que está lá dentro é cozinha burguesa. As pessoas esquecem-se de que existe uma cozinha portuguesa rural, sim, mas também uma cozinha burguesa, também tradicional e que corresponde a uma espécie de «fidalguia sem comedoria». Há pouco tempo, uma rapariga disse-me que eu devia escrever um livro sobre «comida simples que toda a gente sabe fazer». Eu perguntei-lhe o que isso era, e ela respondeu-me: por exemplo, rissóis. Ora, isso é comida burguesa. Na casa burguesa, as empregadas faziam parte do status e passavam a vida a fazer pastelada porque era mais barato.
O excesso de ovos, de canela, de gordura… Afinal, são apenas excepções?
Excepções de festa. As pessoas começavam a juntar os ovos em Novembro para os terem no Natal. Não pensavam que eles não se podiam conservar durante tanto tempo, mas a verdade é que não morria ninguém. A festa é que era a altura da opulência.
Ainda assim, uma opulência pobre em diversidade?
Não, isso é mentira. Eu sou alentejana [de Beja] e, na minha casa, sempre se fizeram os quatro cozidos durante o ano, conforme os produtos da época. São cozidos limpos: o grão sabe a grão, a abóbora sabe a abóbora. Quando você come num restaurante com fama no cozido, aparece-lhe uma travessa horrorosa com couves, com todas as carnes que há, com cartilagens e gorduras, enchidos de toda a parte… Uma mistura sem identificação ou identidade. Eu não identifico a cozinha portuguesa com esse sabor.
A cozinha portuguesa é limpa e pura porque preserva o sabor dos alimentos sem grande manipulação?
Não há muito tempo, comi, com outras sessenta pessoas, uma refeição organizada pela Slow Food numa terra pequena. Eram várias sopas – porque a cozinha portuguesa é uma cozinha de sopas; sabemos fazê-las como mais ninguém. Nenhum dos ingredientes havia sido comprado, à excepção de um pedaço mínimo de chouriço, e o essencial eram ervas que pessoas tinham andado a apanhar. Foi uma refeição com sabores absolutamente inesquecíveis.
Mas, como é que se consegue fazer isso em casa? Com produtos biológicos?
Não sou muito adepta dos produtos biológicos. Consegue-se, educando as pessoas. Tenho a impressão de que estamos numa época de viragem e não há ninguém que trabalhe em gastronomia que saiba já para onde vamos. É sintomático que o Adriá, que é um génio, tenha anunciado que vai fechar o El Bulli durante dois anos [em 2012 e 2013] para repensar a cozinha que faz. Uma vez, ele e o Arzak [Jose Maria Arzak Etxabe, basco, um dos precursores da nova cozinha espanhola], chefs de duas gerações diferentes, estavam a dar uma entrevista e o Arzak sentiu um cheiro a choco grelhado e disse: «Isto é que é cozinha!» O David Lopes Ramos [jornalista e crítico gastronómico] perguntou-lhe se ele comia a comida que fazia. E ele disse que não, que gostava é de fabada [feijoada, prato tradicional da região das Astúrias]. Todos os chefs a quem fiz a mesma pergunta , responderam-me que comem é a comida que a mulher deles faz.
A mim, o que me interessa é essa cozinha que tem a ver não com aquilo a que depreciativamente chamam «coisas antigas», mas com o uso. Nos meus livros, eu só vou até ao que se pode fazer em casa, até à porta da casa da família. Chamo aos meus livros de cozinha «livros úteis» só para não dizerem que estou a armar quando digo que são livros de cultura. O uso é cultura. A cozinha de autor não é praticável em casa. Daí a grande confusão que fazem entre mim e eles.
Volto a insistir: mas, para a cozinha de casa, os bons produtos com os sabores originais são, ou difíceis de encontrar, ou muito caros…
Temos de comer menos quantidade. Comemos muito mais do que precisamos. Na casa da minha mãe, onde nunca se passou necessidades, uma posta de bacalhau era suficiente para fazer uma açorda que chegava para todos. A água de cozer o bacalhau servia para fazer a açorda e, à parte, serviam-se as lascas da posta numa travessa. E não era comida de miséria; era assim. Até os ricos comiam assim. Quando muito, a mesa mais rica teria mais qualquer coisa: umas boas fatias de paio ou azeitonas…
É só uma questão de mudança na economia doméstica, é isso? Encontramos bons produtos no supermercado, tal como na mercearia ou no mercado ou directamente no produtor?
Hoje encontramos excelentes produtos à venda em qualquer um desses sítios. Algumas lojas e supermercados gourmet, por exemplo, são um deslumbramento. Mas o essencial é que comer menos é um princípio saudável e de longevidade.
Então, o que é que nos falta para preservarmos o tal sabor português?
Muitas vezes, o que nos falta é respeito.
[Vai buscar um livro de cozinha português apresentada como de autor. Abre-o numa página onde se lê: «Queijo da Serra com doce de figo» A fotografia que ilustra a ‘receita’ mostra uma espécie de copo de metal para gelado coberto por uma pequena bola manipulada de queijo da Serra e, sobre o mesmo prato, ao lado, um pedaço de doce]
Não percebo o que é isto. Não será falta de respeito pegar num queijo da Serra e, com uma colher de gelados, tentar fazer uma bola, ainda por cima mal feita? Isto é uma porcaria! Só mostra falta de cultura, de sensibilidade e de bom gosto. É uma falta de respeito pela pessoa que fez este queijo e perante todos nós, que somos donos deste queijo! E os responsáveis por isto, mais do que os autores, são os editores. São eles quem eu mais responsabilizo por faltas de pudor como esta.
[Refere ainda um livro apresentado como de nova cozinha tradicional portuguesa que propõe uma receita de «lula recheada com rabo de boi»!]
Mas também há com certeza bons exemplos.
Tem havido algumas aquisições inteligentes. Algumas delas trazidas até por cozinheiros que vieram de fora, cujas receitas nós assimilámos porque têm o nosso paladar. As pessoas esquecem-se de que o Bacalhau à Brás não é muito velho. Ou o Bacalhau à Gomes de Sá…
…ou o Bife à Marrare. Ou o Bacalhau à Zé do Pipo…
Ah, esse é um caso único, e nós aceitámo-lo, mesmo com maionese. Muito obrigada a todos os que contribuam para o alargamento da cozinha portuguesa, porque algumas coisas irão morrer. Agora há a moda das reconstituições; dos jantares medievais, por exemplo. Ninguém consegue comer aquilo e aquilo eventualmente um dia foi português! Mas o paladar evolui, modifica-se, está de acordo com as épocas e os ambientes. Não é por acaso que o Bacalhau à Brás é uma invenção completamente genial. É uma invenção portuguesa, perfeita. Não precisa de mais nada, só de uma salada a acompanhar. É genial.
Os portugueses sabem reclamar quando se atenta contra o património gastronómico?
Há quem saiba, quem se interesse muito. A abertura para a cozinha vanguardista foi acompanhada por um movimento revivalista. As pessoas pedem constantemente comida portuguesa. Por exemplo, o Tavares — excelente, por sinal — é obrigado a fazer cozinha portuguesa, mas, claro, tem de dar uns toques de restaurante do luxo. O que não se pode é servir pezinhos de coentrada sem osso: os ossos fazem falta! E há quem reclame. Faz tempo que quero ir a um restaurante onde servem arroz de marisco cheio de cascas de lagosta só para perguntar ao empregado se ele sabe, por acaso, o nome do senhor que comeu a lagosta cujas cascas eu tenho no prato! Alguém tem de dizer estas coisas.
O problema não está no facto de os chefs não estarem na cozinha?
Pois, não estão. Porque, em Portugal, embora haja muito talento, o que é inquestionável, praticamente não há cozinheiros. Há empresários ou, quando muito, cozinheiros-empresários. O que eu detesto é cozinha mal feita. Eu gosto de cozinha moderna. Gosto quando é bem feita e sabe bem. A única coisa é que, passadas vinte e quatro horas, não sei dizer o que é que comi. Enquanto que, se comer um cabrito assado como comi uma vez no [restaurante] Cruz Sobral, em Braga, há muitos anos, nunca mais me esquecerei nem daquela cor nem daquele sabor.
Há pouco tempo, num restaurante em Lisboa, num almoço com um grupo de pessoas, nenhum de nós conseguiu tirar a pele ao peixe que tinha sido servido. No final, perguntaram-nos se tínhamos gostado. Quando eu expliquei que não tínhamos conseguido comer o peixe porque a pele não se despegava, disseram que «é porque foi cozido em vácuo». Eu respondi: «E o que é eu tenho a ver com isso? Se não o consigo comer…» Veja que alguns até referem na ementa que tal prato de carne foi cozido «a baixa temperatura durante 36 horas». Ora, a essa temperatura e durante tanto tempo, a carne só pode estar a apodrecer!
Qual foi a última coisa que comeu num restaurante e a surpreendeu pela positiva?
A última coisa que me anda na cabeça, porque não faço ideia de como se faz, é uma ostra que comi no restaurante Panorama [do Hotel Sheraton, em Lisboa, da responsabilidade do chef Leonel Pereira]. E eu não gosto de comida crua, tem tudo de passar pela mão do homem. Mas provei e é uma ostra que se come toda e dá a impressão de que estamos a comer a casca. É genial porque também sabe muito bem. Não é só fantasia ou espectáculo. É absolutamente divino.
Há algum prato de comida caseira que prefira?
Ah, gosto de tudo o que a minha empregada faz. Desde que seja bem feito, como tudo. Eu tenho muito a ver com o ditado: «O difícil não é o burro comer a palha, o difícil é saber lha dar.»
Não acredito que não tenha um prato preferido entre a cozinha tradicional portuguesa…
Sabe, eu raramente vou aos meus livros. Mas quando regresso à Cozinha Tradional Portuguesa, comovo-me. Não queria falar sempre da Açorda à Alentejana. Mas é uma coisa tão bem pensada, que tem tanto a ver com a nossa cultura e com os povos que por aqui passaram, com o nosso passado muito remoto… É a erva, o alho, o azeite, o pão, e por vezes também o ovo. Simples e fantástico. O mesmo acontece no Norte com o caldo verde: só batatas, azeite e alguma couve. Pergunto: serão estes cozinheiros jovens capazes de inventar qualquer coisa que, com tão pouco, agrade a toda a gente e perdure?
© Filipa Melo/Ler (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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