Caro amigo, nas horas poeirentas e intemporais da cidade, agora que as ruas jazem negras e exalam nuvens de vapor na esteira dos camiões-cisterna e agora que os bêbedos e os sem-abrigo desaguaram nas vielas e nos terrenos baldios, abrigados junto aos muros, e os gatos vagueiam nas soturnas cercanias, esguios e de espáduas altaneiras, agora nestas galerias empedradas ou de tijolos enegrecidos de fuligem onde as sombras dos fios eléctricos formam uma harpa espectral nas portas das caves, ninguém caminhará senão tu.
Em Julho de 2008, o tradutor português Paulo Faria partiu para Knoxville, no estado norte-americano do Tennessee, à procura dos cenários de Suttree, o romance mais autobiográfico de Cormac McCarthy. Da viagem, nasceu uma tradução excepcional, editada pela Relógio D’Água, e um registo único dos lugares e memórias da fase sulista de um dos mais enigmáticos autores americanos de culto.
«Penetra numa cidade mais sombria (…) Um mundo para além de toda a fantasia, malévolo e táctil e desagregado (…) Chegámos a um mundo dentro do mundo. (…) O resto é silêncio.» Aqui viveu Cormac McCarthy, dos 4 aos 41 anos de idade, entre 1937 e 1974. Por aqui vagueou Cornelius Suttree, entre 1950 e 1955. No rasto dos dois, em Julho de 2008, aqui esteve o tradutor Paulo Faria. Autor, personagem e tradutor reencontram-se agora no espaço e no tempo suspensos de uma cidade que, como todo o mitológico Sul norte-americano, é mais um estado de espírito do que uma realidade geográfica. Bem-vindos a Knoxville, Tennessee, sudeste dos EUA. Bem-vindos a Suttree.
Paulo Faria, 42 anos, é licenciado em Biologia. O avô legou-lhe uma grande afinidade com a Língua Inglesa, o que, em 1996, lhe permitiu traduzir Crash, de J. G. Ballard, para a Relógio D’Água. Desde então, assinou várias traduções de grande ficção para aquela editora, entre elas as de seis dos dez romances que compõem a bibliografia de Cormac McCarthy. Suttree, apurada ao longo de um ano, é a mais recente, a que o levou mais longe na descodificação do universo e da linguagem de um autor e mais próximo da sua maior ambição enquanto tradutor. «Numa entrevista à Paris Review, em 1958, Hemingway afirmou: “Tudo o que podemos omitir, mas sabemos, continua a estar presente na nossa escrita, e a sua qualidade irá transparecer. Mas quando um escritor omite coisas que não sabe, estas surgem como buracos na sua escrita.” Substituindo”escritor” por “tradutor, foi este o lema que adoptei.»
À procura do que não está lá, mas transparece em Suttree, Faria não hesitou em partir para Knoxville a expensas próprias. Serviam-lhe como guias e «anjos da guarda» o professor universitário Wesley Morgan, um dos maiores especialistas na obra de McCarthy, e o escritor, crítico literário, cineasta e pintor nova-iorquino Peter Josyph, de quem aqui reproduzimos parte das fotografias que documentaram a viagem. Pelo caminho, revelar-se-ia Cormac McCarthy, um criador confiante e reservado.
Knoxville foi fundada em 1786 e, embora pequena («não é vila nem cidade, como diz a canção»), é a terceira maior cidade do estado do Tennessee. Situada no vale de confluência dos rios French Broad, Holston e Tennessee, a 30 quilómetros do Parque Nacional das Great Smoky Mountains, foi durante muito tempo um ponto de paragem dos que migravam para o Oeste, crescendo em função dos barcos a vapor, das linhas férreas e dos humores do rio. Após a Grande Depressão, as inundações constantes e a necessidade de revitalização económica levou o governo federal a investir na produção massiva de energia hidroeléctrica e, para tal, a criar a Tennessee Valley Authority. Em 1937, ao aceitar um cargo elevado nesta entidade, o advogado Charles Joseph McCarthy mudou-se com a família de Rhode Island para Knoxville.
No dia seguinte, a alguns quilómetros a sul da cidade, numa curva da estrada e parcialmente oculta pelas silvas mortas, chegaram a uma velha casa com o vigamento de madeira à vista, com chaminés e empenas e um muro de pedra em volta. O homem parou, depois empurrou o carrinho pela rampa acima.
Que casa é esta, papá?
É a casa onde eu cresci.
A casa ardeu em Fevereiro de 2009 e dela só restam os escombros de três chaminés. Paulo Faria ainda a viu de pé. «Parecia completamente abandonada, mas, ao fundo, ouvia-se uma música a tocar num rádio, em surdina. À frente, estava estacionada uma carrinha com os pneus em baixo e, ali perto, vi os muros que Cormac e os irmãos construíram em pequenos. A atmosfera era bizarra, fantasmagórica.» No friso da lareira de um dos quartos, talvez ainda existissem os buracos deixados pelas tachas que, tantas décadas antes, seguraram as peúgas de Natal das crianças McCarthy. Cormac refere-os em A Estrada, de 2006, romance-legado para o seu filho mais novo.
Pai e filho caminham juntos, o passado de um revelando-se e cimentando a estrada do outro. As coisas simples, físicas, naturais, adquirem em McCarthy uma «gravidade bíblica», «uma espécie de realismo mórbido» (Richard B. Woodward, The New York Times). É certa uma «subtil obsessão pelo carácter único das coisas», partilhada por Cornelius Suttree, o homem que vagueia durante cinco anos pelas margens de Knoxville, numa via sacra (crística?, interroga-se Paulo Faria) entre os deserdados, a escória e os detritos.
Neste cru, mas poético universo ficcional, a mística é toda masculina (evoca James Fenimore Cooper) e feita de crueldade, exclusão e violência, jamais de sentimentalismo. As opções que torcem e desfocam o destino nascem na obra do autor enquanto expressão de conflitos latentes entre pai e filho. McCarthy, como Suttree, decide abandonar o conforto da família para experimentar o desvio e a solidão.
Da casa abastada onde cresceu fica apenas o registo da ruína. Da memória do mundo do pai, fica um testamento, conhecido e também furiosamente contrariado por Suttree: «Na sua derradeira carta, o meu pai disse-me que o mundo é comandado pelos que estão prontos a assumir a responsabilidade de o comandar. Se é do pulsar da vida que sentes falta, deixa-me que te diga onde é que o encontras. Nos tribunais, nos negócios, no governo. Nas ruas nada acontece. Nada senão uma pantomina encenada pelos indefesos e impotentes.» Será precisamente essa pantomina-burlesca o que Paulo Faria acredita que Cormac quis retratar e justificar ao seu pai, criando Suttree, uma «carta-enquanto-romance»: «Um ensaio acerca da escumalha em forma de carta ao pai, portanto, mas salpicado de rasgos de humor que são um autêntico hino à vida, uma proclamação do prazer puro da existência» (do prefácio, intitulado «Suttree ou a Aristocracia do Rebotalho»).
És um homem às direitas, coração e tudo. Mirrado por mil sóis e sem amor. O tegumento repuxado e fendido como a casca de um fruto que amadureceu demasiado. (…) O rio corria lá fora. Cloaca Maxima. Morte por afogamento, o tiquetaque do relógio de pulso de um morto.
Numa rara entrevista ao The New York Times, em 1992, Cormac explicou: «Eu não era o que eles [a família] esperavam. Senti muito cedo que nunca viria a ser um cidadão respeitável. Odiei a escola desde o primeiro dia em que lá pus os pés.» Enquanto esperava a boleia do pai para regressar a casa depois da escola, o miúdo escapava-se para as «ruelas arenosas», para a margem do rio ou, como escreve Paulo Faria, para «o lado ocidental do edifício do mercado (hoje desaparecido), na gíria, o “lado das escarretas”».
Respirar hoje «a atmosfera de Suttree» na beira-rio de Knoxville é, garante o tradutor, «um exercício de arqueologia». Difícil acreditar que esta zona limpa e bem iluminada da cidade, onde os únicos barcos flutuantes são restaurantes para turistas, foi em tempos «um autêntico bairro de lata, habitado por negros, prostitutas, pescadores, por uma população marginal que vivia em casas miseráveis». Aqui, ancorada junto à ponte da Gay Street (antes atracção de suicidas), é quase impossível imaginar a choupana flutuante de Cornelius Suttree, o pescador de peixes «e homens». As excrescências cuspidas pela sociedade foram entretanto varridas para longe.
Dantes, até os rapazes pobres peritos em dobrar e atirar os jornais temiam a ronda nesta zona, a MacAnnaly Flats. Na companhia desses amigos de infância e adolescência que nunca o enjeitaram como menino rico ou «mija-mansinho cheio de estudos», Cormac pescava com espinhel ou caçava «só pelo gozo de enganar os bichos» (contou o amigo Walt Clancy a Paulo Faria).
«Havia um grande grau de irmandade entre eles na partilha de um mundo que, hoje, já só existe na lembrança dos velhos», sustenta o tradutor. No último ano do liceu (a Catholic High School de Knoxville), em solidariedade para com o amigo Jim Long (inspirador da personagem J-Bone), excluído por excesso de faltas, Cormac terá mesmo pensado em não comparecer na cerimónia de entrega dos diplomas, decisão com certeza contrariada pela família. Revela Paulo Faria: «Em Knoxville, através do contacto com os seus velhos amigos, percebi a dimensão do rompimento de Cormac com a família. A opção por uma vida marginal foi deliberada e consciente, quase uma decisão política. Para ele, a vida estava mesmo ali. Colocando-se à margem [de uma vida convencional], precisou de afirmar a sua posição e de fazer escolhas.» Reside aí, talvez, a razão e a força do seu «brilho de observador arguto e implacável dos encantos e mistérios dos gestos quotidianos e banais, assim como da profunda humanidade dos monstros de feira, dos seres fabulosos que a sociedade cospe para as suas margens.» Haveria de ser só mesmo dele a atracção pelo bizarro, a puxá-lo para as gentes, os lixos e as paisagens lodosas.
Percorreu uma língua de lama e de antiquíssima pedra juncada de novelos de fio de nylon, finas linhas de pesca tecidas por aranhas, dir-se-ia, anzóis enredados, peixes para isco já ressequidos e ossinhos esmagados no meio das rochas. Com a biqueira do sapato, arrancou latas dos seus moldes na argila, expondo lesmas que se encolheram e flectiram os corpos silenciosamente, fustigadas pelo sol implacável. A vereda subia junto de um muro de arenito púrpura sobranceiro a uma baía, e, nos baixios que os raios solares iluminavam, a seus pés, avistou as compridas silhuetas de lúcios-lança catafractários, jazendo numa espécie de repouso eléctrico entre os juncos.
Quando adolescente, Cormac possuía todos os hobbies do mundo. Todos, menos a leitura e a escrita, que só descobrirá aos 23 anos, para fugir ao tédio da rotina enquanto estava ao serviço da Força Aérea americana, no Alasca. Antes, interessavam-lhe mais os bichos e a natureza, «mil e um ofícios», saber fazer com as mãos. Algo o prendia àquela terra, a terra virgem, «a base temporal mais remota» (Marcus Cunnlife) do Sul dos EUA. Reflecte-o a primeira fase da sua bibliografia, iniciada em 1965 com The Orchard Keeper.
Suttree, editado em 1979, é o quarto romance de McCarthy e marca a sua maturidade enquanto escritor. Burilada ao longo de 20 anos, a narrativa fecha a fase sulista. Antecede a partida para residência definitiva em El Paso, no Texas, em 1974, e a escrita da obra-maior, Meridiano de Sangue (de 1985), já dominada por esse Oeste identificado por D.H. Lawrence com «a essencial alma americana: dura, estóica, isolada e assassina».
A meia-hora de carro de Knoxville, descobre-se ainda o celeiro onde, durante grande parte da escrita de Suttree, o autor viveu com a segunda mulher, a actriz e cantora inglesa Anne DeLisle. Ao The New York Times, em 1996, Anne confidenciou ter dactilografado por duas vezes o original do romance. «Vivíamos na mais completa pobreza. Tomávamos banho no lago. Quando alguém lhe ligava e oferecia dois mil dólares para ir a uma universidade falar sobre os livros, ele respondia que não tinha mais nada para dizer além do que estava impresso. E, então, por mais uma semana, comíamos feijões.»
Durante duas décadas protegido na Random House pela atenção zelosa de Albert Erskine (o lendário editor de William Faulkner), McCarthy foi sempre um autor esquivo, avesso a participar em qualquer promoção da sua obra. A fortuna chegou tarde (em 2008, vendeu o espólio à Albert B. Alkek Library da Universidade do Texas, por cerca de um milhão de dólares). Os tempos de Knoxville foram, seguramente, de manifesta pobreza.
Na casa-celeiro visitada por Paulo Faria é ainda visível a ampliação que o escritor projectou e levantou sozinho, com «paredes de pedra nua, sem argamassa, dando assim mostras de uma mestria só ao alcance de um alvenel exímio». Para a construção da lareira, conta-se que foi buscar material às ruínas da casa de outro grande escritor da região, James Agee (1909-1955), «numa mescla maravilhosa de herança física e espiritual» (do prefácio).
É precisamente a artesania e o amor ao passado o que coloca McCarthy entre os melhores herdeiros do espírito do «Sul & Companhia Limitada» e da família gótica faulkneriana. Suttree exprime a identificação do escritor com os característicos gongorismo e retórica da linguagem, ironia multifacetada e ambígua e «ethos» sulista. Pleno de alcunhas e calão, termos e expressões arcaizantes, vocabulário dos mais variados ofícios manuais, da Medicina ou do mundo natural, o romance representa um especial desafio à tradução. Para lhe responder, Paulo Faria chegou a recorrer a Gil Vicente. Forjou-se ele mesmo como artífice na criação de uma melodia única, fiel à capacidade do génio de McCarthy em «insuflar traços de lenda e epopeia na chã realidade, construir um caleidoscópio exaltante com estes cacos de vidro respigados nos meandros das suas memórias de infância e adolescência».
Contemplou um mundo de incrível beleza. (…) Um lume fresco e verde irrompia nos bosques uma e outra vez e ele ouvia os passos dos mortos. Tudo se desprendera de si. (…) Jazia de costas no cascalho, com o âmago da terra a sugar-lhe os ossos, um momento de vertigem e tonturas com esta ilusão de cair para cima, através do espaço azul e ventoso, em direcção à orla exterior do planeta, projectado aos trambolhões através dos cirros esparsos lá no alto. (…) Nessa noite passou por um cemitério de crianças situado no socalco de uma encosta, abandonado e entregue às ervas daninhas.
Sobre tudo, uma atmosfera de sonho, o redemoinho da poeira fina do que não é dito. Estamos a 1500 metros de altitude, nas Smoky Moutains. Três campas de crianças alinham-se, cercadas por arame farpado. Paulo Faria recolhe um pequeno caco de loiça junto à casa isolada onde elas terão vivido com a família, no final do século XIX, início do XX. Quer guardá-lo, à semelhança do rebite carcomido de ferrugem que o amigo Peter Josyph o fez recolher como amuleto na linha férrea da cidade. «Era mais um elemento da atmosfera delirante criada por McCarthy. Havia qualquer coisa de mágico em chegar ali, àquele sítio que não vem nos mapas, após duas horas de subida a pé, pelos trilhos da montanha.»
Suttree sobe à montanha como Cristo atravessou o deserto. Procura o que só se encontra em isolamento, até mesmo de si mesmo. Uma comunhão? Uma redenção? Tudo e nada; a resposta a cada leitor. Explica o tradutor: «O mistério faz parte da obra de McCarthy. Cabe-nos preencher os buracos que quis deixar vazios. Não sentimos falta de nada quando sabemos que o autor o conhece.» E exemplifica com a quase total ausência de referências às características físicas de Cornelius. Dele, só nos é dito que possui «caracóis escuros» porque caem no chão enquanto o barbeiro os corta. «No entanto, acabamos o livro e temos a imagem do nosso Suttree.»
Nas ruas de Knoxville, a cada passo «tropeça-se numa igreja». Em Suttree a religiosidade está também omnipresente. Mas, salienta Paulo Faria, ao lado de cada igreja, encontramos um bar. Ali, o álcool representa um incontornável território de transgressão. Em Suttree, abre espaço para um «humor folclórico e obsceno, lascivo» (M. Cunnlife) e marca a despedida de McCarthy de um certo estilo de vida. No entanto, manter-se-à até hoje intacta a principal convicção do escritor, expressa ao The New York Times: «A noção de que as espécies podem de algum modo ser melhoradas, de que podemos todos viver em harmonia, é uma ideia muito perigosa. Os que acreditam nela, são os primeiros a desistir das suas almas e da sua liberdade.»
Próximo das ficções alegóricas de Flannery O’Connor, o universo de McCarthy condensa uma particularíssima visão religiosa sobre o livre-arbítrio, o pecado e a condição humana. Privilegia os espíritos selvagens, impulsionados por algo indomável mas redentor, como o de Suttree, ou pela amoralidade, como a do ingénuo e disparatado criminoso Gene Harrogate, o seu amigo da casa de correcção. Paulo Faria defende que o resultado é uma tragicomédia ou romance burlesco, de «humor escatológico». J. Douglas Canfield descreveu-o assim: «Tal como Harrogate nas suas grutas e Suttree nos seus sonhos, mergulhamos na abjecção somente para sermos regenerados pelo humor. A arte deste romance ilumina o seu âmago tenebroso.»
Jazia na sua crisálida de melancolia e não emitia som algum, partilhando a sua dor, quinhão por quinhão, com os que jaziam também, ensopados em sangue, na berma da estrada ou no chão juncado de cacos de vidro das tabernas ou algemados no calabouço. Dizia que até os danados no Inferno possuem a comunhão do seu sofrimento e parecia-lhe que decifrara do mesmo modo para os vivos uma amargura simbólica, qual herdade de cujos celeiros o desastre e a ruína são repartidos em obediência a leis de equidade tão subtis que escapam à adivinhação.
Capaz de fazer rir e chorar, Cornelius Suttree é uma personagem de fronteira entre o realismo e a metáfora, sem sombra de heroicidade, ainda que com uma aura mítica. Sem ambições materiais, rejeita a próspera família do pai, a mulher e um filho (cuja campa ele mesmo cobrirá de terra). Instruído, educado como católico, opta pela indolência, pelo inebriamento alcoólico, por viver entre os ignorantes e os excluídos, na sua maioria protestantes baptistas. Inconformista, ambivalente, trava, afinal, uma luta com a solidão, parente igual da morte e de Deus. No final, encontra o seu próprio cadáver na cama. De narração difusa e com elipses temporais, Suttree é um espaço de sonho. Um sonho dificilmente apreensível por qualquer um dos companheiros de Cornelius em Knoxville, mas cuja chave talvez esteja na desejada comunhão do pescador com eles.
John Hannifin (por alcunha, Bacamarte), Jim Long e Walt Clancy (um dos «irmãos Clancy», também referidos em Suttree) convidam Paulo Faria para uma tarde de «check pool». Encontram-se no Eagles Club, um clube de convívio masculino fundado por imigrantes irlandeses, situado ao pé da Igreja da Imaculada Conceição, onde o escritor fez a sua formação católica. Mais do que a visita às casas que habitou, às montanhas, à gruta do índio Michael, ao lugar da cena de baptismo colectivo ou do ancoradouro da casa de Suttree, o tradutor guardará esses momentos de convívio com os amigos de infância de McCarthy como os mais inesquecíveis da viagem.
Conta: «Naquela tarde, senti uma espécie de suspensão do tempo. E confirmei que a única maneira de aprender as coisas é mesmo fazê-las, sem pressa e com paciência.» Enquanto o familiarizavam com as regras do jogo, os três homens falam-lhe do tempo em que Cormac era, para eles, «um entre iguais». Podia ser como numa dada passagem do romance, onde há um homem que joga só com uma mão, não por ter qualquer deficiência, mas porque joga demasiado bem e o obrigaram a essa limitação. Noutra, há um homem sem mão, que suporta o taco com o coto. Assim, nenhum deixa de ser um deles.
Paulo entende, por fim, o «poder salvífico dos símbolos», a «ironia cifrada» de grande parte das cenas de camaradagem marginal em Suttree. Aquele ainda é «um mundo dentro do mundo». Escreverá no prefácio do romance: a maneira de ver o mundo de McCarthy talvez seja somente aquela «em que o pleno exercício da humanidade exige que encenemos a paixão e a compaixão de Jesus Cristo e a descida às entranhas de todos os alegados infernos na terra, para forjarmos laços com os nossos companheiros de sofrimento, mais dignos de confiança do que toda e qualquer instituição ou figura hierárquica.»
Antes da despedida, John Hannifin, Jim Long e Walt Clancy garantem a Paulo Faria que são muito raras as visitas de Cormac McCarthy a Knoxville. Restam poucos familiares a residir ali; os amigos e conhecidos vão desaparecendo. Na cidade, quase não existem referências expostas ao escritor, talvez em respeito pelo seu desejo de reclusão. No Oeste, McCarthy definiu entretanto um outro rumo de vida e de escrita. Knoxville continua contudo impressa na sua biografia, ao jeito da retórica sulista: para sempre e nunca mais. Como Suttree.
LER/ Fevereiro 2010 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
Comments